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ARTIGO: Mil noites do governo de Jair Bolsonaro

A vocação humana para cortar o tempo em fatias nos faz destacar dias comuns, nos quais não há nada a comemorar. É o caso dos mil dias de Jair Bolsonaro à frente do governo brasileiro. Apesar do esforço do Planalto em promover viagens oficiais com inaugurações eleitoreiras de obras inacabadas ou sequer iniciadas, o fato é que esses dois anos, nove meses e 27 dias foram trágicos para o Brasil em inúmeros aspectos: saúde pública, direitos humanos, economia, relações internacionais e meio ambiente. Sobre este último, o saldo até agora é preocupante: Bolsonaro está deixando uma herança de destruição que talvez não seja mais possível reverter.

O caso mais dramático é da floresta amazônica e dos povos originários e ribeirinhos que nela habitam. Ao tomar posse em 1º de janeiro de 2019, Bolsonaro escolheu como primeiro ato de seu governo editar a Medida Provisória (MP) nº 870/2019, que transferia a atribuição de demarcar terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), um gravíssimo conflito de interesses. Foi o pontapé inicial de um desmonte ambiental sem precedentes, que destruiu ou enfraqueceu políticas, órgãos federais e legislações adotadas nas últimas quatro décadas para proteger a natureza, os povos indígenas e as populações tradicionais que fazem o uso sustentável dos recursos naturais para assegurar seus meios de sobrevivência.

Para levar a cabo seu projeto de enfraquecimento do arcabouço legal e administrativo de proteção ambiental no país, a gestão Bolsonaro atuou em três eixos. No Executivo, pelas mãos do ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, lançou mão de normas infralegais, que não demandam aprovação do Congresso Nacional. Segundo o monitor Política por Inteiro, do Instituto Talanoa, foram 1.229 atos infralegais, incluindo 122 reformas institucionais (extinção, alteração e fusão de órgãos), 57 atos de desestatização, 37 revisões de regras, 58 de flexibilização, 54 de desregulação e 37 revogações. Mas ele também prejudicou – e muito – pelo que deixou de fazer: cortes nos orçamentos do Ministério do Meio Ambiente, no Ibama e no ICMBio. Salles travou o Fundo Amazônia alegando irregularidades e desvios que nunca conseguiu provar.

O segundo eixo foi a atuação da base do governo no Congresso para aprovar projetos de lei que enfraquecem a legislação ambiental que Bolsonaro, hipocritamente, elogiou em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 21 de setembro.

O terceiro eixo talvez seja o mais característico do modus operandi: por meio dedeclarações e discursos nas redes sociais, entrevistas e viagens desde sua campanha eleitoral, o governo Bolsonaro incentivou o descumprimento de leis ambientais. Apoiou grileiros e garimpeiros ilegais. Assediou as instituições responsáveis pela fiscalização ambiental. Disseminou notícias falsas sobre o nível de conservação ambiental do país. Fomentou um clima de guerra contra povos indígenas.

O resultado não poderia ser outro: em menos de três anos de governo, o Brasil teve três recordes de desmatamento e queimadas nos seus dois maiores biomas, o Cerrado e a Amazônia. No caso da floresta, a situação se tornou perigosíssima – enão só pelo avanço do crime organizado na região. O bioma nunca esteve tão próximo do ponto de inflexão a partir do qual a floresta entra em um ciclo de autodegradação e se converte em outro tipo de formação vegetal, mais seca e mais suscetível a queimadas. Embora o percentual convertido para outros usos de terra esteja abaixo do ponto de não retorno, por volta de 17% atualmente, pelo menos outros 17% já foram degradados. Em alguns pontos, a floresta já está emitindo mais carbono para a atmosfera do que capturando. Será necessário um enorme esforço einvestimentos substanciais para recuperar a floresta perdida.

O que os mil dias de governo Bolsonaro sugerem é que seu governo deixará um legado de destruição permanente em um dos mais importantes biomas do planeta. Como o Painel Científico da Amazônia está mostrando, ele é um dos elementos mais críticos do sistema climático do planeta e desempenha um papel crucial nos ciclos globais da água e na regulação da variabilidade climática. O fenômeno dos rios aéreos é amplamente reconhecido pela ciência e começa a ser percebido também pela população – infelizmente, pela desregulação provocada pelo desmatamento. Por fim: na Amazônia estão estocados de 150 a 200 bilhões de toneladas de carbono em seus solos e vegetação. Não há chance de estabilizar o clima em patamares minimamente seguros se uma fração desse total for emitida.

A destruição legada pela gestão Bolsonaro alcança todos os biomas. Há gravíssimos problemas no Pantanal, no Cerrado, na Caatinga, no Pampa, na Mata Atlântica e no ambiente marinho – ilustrados por imagens chocantes que a imprensa tem divulgado ao longo dos últimos mil dias. O Pantanal perdeu um terço de sua área para as chamas no ano passado. Este ano, vimos as queimadas avançarem no Cerrado mineiro. A tempestade de areia que impressionou os brasileiros nas últimas semanas é o triste e assustador retrato dessa perversa combinação de um clima que se tornou mais seco com um solo mais exposto pela ausência de práticas sustentáveis.

Os mil dias de governo Bolsonaro foram tão sombrios para a questão ambiental que podem ser descritos como mil noites. Foi o pior período da gestão socioambiental desde que existe uma, inaugurada por Paulo Nogueira Neto, ainda durante aditadura militar. Desde então, todos os governos, sem exceção, avançaram, em maior ou menor medida, na estruturação da gestão ambiental. Bolsonaro acaba com essa tradição e inaugura o retrocesso como política.

Os pesadelos só não foram mais assustadores porque a sociedade civil brasileira, apoiada pela imprensa e pela comunidade internacional, conseguiu resistir e reverter alguns retrocessos nefastos. A conta da destruição ambiental já está sobre a mesa. Nosso desafio será aprender com a experiência para retomarmos o caminho da sustentabilidade. O Brasil e sua população merecem dias melhores.

FONTE: WWF BRASIL

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