Álbum de 1972 em que Gilberto Gil festejou a volta do exílio, ‘Expresso 2222’ faz 50 anos com combustível para alcançar futuras gerações
Ao voltar para o Brasil em 11 de janeiro de 1972, vindo de Londres com o amigo de fé tropicalista Caetano Veloso, Gilberto Gil trouxe na bagagem um sentimento de felicidade pelo retorno à pátria-casa.
Na mente fervilhante, o cantor, compositor e violonista baiano também trazia novas informações musicais angariadas ao longo dos três anos vividos na Europa – precisamente na capital da Inglaterra – desde que o artista tinha sido obrigado a sair do Brasil em julho de 1969 em via-crúcis iniciada na manhã de 27 de dezembro de 1968 com a prisão de Gil e Caetano.
Essa bagagem gerou um dos álbuns mais cultuados da discografia de Gil, Expresso 2222, LP gravado em abril de 1972 no estúdio Eldorado, na cidade de São Paulo (SP), em sessões em que os engenheiros de som Christopher Barton e Marcos Vinicius pilotaram a então moderníssima mesa de 16 canais. Quinto álbum solo gravado em estúdio por Gil, Expresso 2222 chega com viço aos 50 anos festejados em 2022.
Remasterizado no estúdio Abbey Road de Londres por Steve Rooke, para a edição em CD lançada em 2012 em comemoração dos 40 anos do disco, Expresso 2222 começou a circular no mercado fonográfico em julho de 1972, em edição fabricada pela gravadora Philips com capa que expunha foto do filho do cantor, Pedro Gil (1970 – 1990), nascido em Londres e clicado por Edson Santos então com dois anos.
Criada pelo artista gráfico Ednizio Ribeiro Primo, a diferenciada capa do LP Expresso 2222 tinha abas que, uma vez desdobradas, expunham a forma originalmente circular dessa capa criada como obra de arte.
Mesmo com a novidade da arte, o que mais impressionou no disco foi o conteúdo ouvido quando o vinil começava a rodar. Expresso 2222 se revelou álbum temático em que Gil sintetizou as emoções e os sons inventariados na volta ao Brasil, país em que se formou musicalmente, influenciado tanto por João Gilberto (1931 – 2019) – a ponto de ter montado em 1959, na fase pré-fama, banda intitulada Os Desafinados para tocar música instrumental – quanto por Luiz Gonzaga (1912 – 1989) e por Jackson do Pandeiro ((1919 – 1982), pilares da música da nação nordestina.
O álbum Expresso 2222 partia das informações seminais recebidas dos reis nordestinos para seguir, sem freios e sem medos, rumo a um futuro musical vislumbrado por Gil em Londres, cidade onde os dois versos iniciais da música-título Expresso 2222 foram escritos.
Música conduzida pela eletricidade do violão de Gil, mote da sonoridade orgânica extraída pelos músicos arregimentados por Gil para o disco viabilizado com produção executiva do então diretor artístico da Philips Roberto Menescal (creditado na ficha técnica pela “coordenação de produção”), Expresso 2222 – composição feita por Gil a partir da pisada do baião – tocou bem nas rádios e se tornou sucesso ainda e sempre bem recebido nos shows do cantor, 50 anos após a edição do LP a que deu nome.
O álbum Expresso 2222 foi gravado por Gil com os músicos Antônio Perna (piano), Bruce Henry (baixo), Lanny Gordin (guitarra) e Tutty Moreno (bateria e percussão). Contudo, foi o violão do próprio Gil – máquina de ritmo que começou a operar no ponto exato da reinvenção a partir da volta do cantor ao Brasil – que acabou se tornando instrumento referencial no toque do samba e no próprio disco Expresso 2222, justificando o protagonismo evidenciado no álbum anterior Gilberto Gil, gravado em inglês em Londres e lançado em 1971.
Ao longo dos 34 minutos e meio de Expresso 2222, Gil convergiu tradições nordestinas e informações da bagagem europeia em disco que soou universal justamente por rodear o quintal do artista com visão moderna.
Na abertura do álbum, Pipoca moderna pula serelepe com o toque da Banda de Pífanos de Caruaru em registro instrumental. Parceria de Caetano Veloso com o músico alagoano Sebastião Biano, integrante da formação original da banda de pífanos, Pipoca moderna somente seria gravada por Caetano três anos depois no álbum Joia (1975).
Na sequência, Back in Bahia – uma das quatro músicas inéditas compostas somente por Gil e apresentadas entre as nove faixas do álbum Expresso 2222 – expõe nos versos da letra confessional os sentimentos de Gil no exílio em Londres. Back in Bahia celebra a volta para a pátria-casa, com a pulsação do rock.
Essa eletricidade também move os seis minutos e 20 segundos ocupados no disco pela regravação de O canto da ema (Ayres Viana, Alventino Cavalanti e João do Vale, 1956). Propagado originalmente na voz e no ritmo de Jackson do Pandeiro, O canto da ema ressoou com frescor e suingue inebriante na gravação de Gil, exemplificando a habilidade do artista para reprocessar o passado da música brasileira no álbum Expresso 2222 com o olhar para depois do ano 2000.
Do repertório do mesmo Jackson do Pandeiro, Gil mastigou Chiclete com banana (Gordurinha e Almira Castilho, 1959) com a fome antropofágica dos tropicalistas na batida do samba-rock. Sucesso radiofônico do disco, Chiclete com banana é a gravação de Expresso 2222 que melhor exemplifica – ao lado da faixa-título Expresso 2222 – a habilidade do cantor para redesenhar o samba no refinado traço rítmico do próprio violão, inspirando outros craques do instrumento, como João Bosco, cantor, compositor e violonista revelado naquele ano de 1972.
Cabe ressaltar que a abordagem de Chiclete com banana foi lançada em single que, no lado B, apresentou dueto de Gil com Caetano Veloso no samba Cada macaco no seu galho (Riachão, 1972) – gravação feita na sequência das sessões de Expresso 2222 e incorporado ao álbum como faixa-bônus na edição em CD produzida por Marcelo Fróes para a caixa Palco (1998).
Canção menos conhecida (e menos inspirada) do lote autoral do álbum, Ele e eu espoca flash de Gil e Caetano Veloso no Porto da Barra, praia de Salvador (BA), se alternando entre a calmaria e a eletricidade de almas irmãs que se complementam como yin e yang no diapasão cotidiano da existência.
Composição apresentada há então sete anos pelo sanfoneiro paraibano Abdias dos Oito Baixos (1933 – 1991), Sai do sereno (Onildo Almeida, 1965) é tema forrozeiro eletrificado pela guitarra de Lanny Gordin e pela voz de Gal Costa, convidada da gravação.
No arremate do disco, Gil apresenta reflexões em duas canções da linha filosófica da obra do artista. Outro faixa que exemplifica o toque inventivo do violão apontado por Gil na rota futurista do álbum Expresso 2222, Oriente é canção em que o compositor dá o recado de que tudo pode acontecer porque a vida é mix de destino e determinação.
Já O sonho acabou é a exposição de que a utopia da geração dos anos 1960 tinha se dissolvido na realidade concreta e capitalista da década de 1970.
Como se recusou a continuar dormindo no sleeping bag, Gilberto Gil deu continuidade ao percurso da vida em Expresso 2222, disco que completa 50 anos com combustível para alcançar futuras gerações.
FONTE: G1 ( POR MAURO FERREIRA)