‘Elis’, álbum de 1972, faz 50 anos com o brilho intacto pela perfeição de canto, repertório e arranjos
♪ MEMÓRIA – Da irretocável discografia gravada por Elis Regina (17 de março de 1945 – 19 de janeiro de 1982) entre 1972 e 1980, período da parceria (na vida e na música) da cantora com o pianista e arranjador paulistano Cesar Camargo Mariano, o álbum Elis de 1972 permanece como um dos títulos mais expressivos da obra da artista e da MPB.
Ao completar 50 anos, o álbum Elis se conserva magistral, inclusive pelo repertório selecionado com rigor pela cantora com Roberto Menescal, então diretor da gravadora Philips, creditado na ficha técnica como diretor de produção do disco. Aliado aos arranjos de Mariano e à precisão do canto de Elis, esse repertório lapidar gerou disco ainda atual, um álbum que soa perfeito em 2022.
Décimo álbum de estúdio da cantora, Elis sucedeu dois álbuns gravados pela cantora com produção musical de Nelson Motta, …Em pleno verão (1970) e Ela (1971), que cumpriram a função de rejuvenescer o som e a imagem de Elis, percebida injustamente como cantora ultrapassada na efervescência tropicalista do fim da década de 1960, quando Gal Costa se tornou a voz brasileira da modernidade.
Embora situado no universo mais tradicional da MPB veiculada na mesma plataforma dos festivais que projetara a cantora gaúcha em escala nacional em 1965, o álbum Elis exalou frescor não somente pelo repertório formado por músicas de compositores então emergentes – casos de Belchior (1946 – 2017), de Raimundo Fagner e da dupla formada por João Bosco com Aldir Blanc (1946 – 2020) e revelada naquele ano de 1972 – como pela sonoridade luminosa, arejada, construída por Cesar Mariano, pianista e maestro que arregimentou músicos do naipe de Chico Batera (percussão), Luiz Claudio Ramos (guitarra), Luizão Maia (contrabaixo) e Paulinho Braga (bateria).
Relançado em CD em 2012, quando completou 40 anos, em edição valorizada pela exemplar remasterização de Luigi Hoffer e Carlos Savalla, o álbum Elis voltou ao catálogo há exatamente um ano – em 17 de março de 2021, dia do 76º aniversário da cantora – em edição remixada e remasterizada por Carlos Freitas.
Hoje, 17 de março de 2022, dia do 77º aniversário de Elis, a gravadora Universal Music relança em CD o álbum Falso brilhante (1976) – outro título emblemático da discografia da Pimentinha com Cesar Camargo Mariano – com novas mixagem e masterização.
Capa do álbum ‘Elis’, de 1972 — Foto: José Maria de Melo com arte de Aldo Luiz
Contudo, o brilho do disco Elis de 1972 ainda paira no ar com certa soberania pela maestria alcançada por cantora e maestro em 12 faixas que totalizam 33 minutos de alto nível musical. Decorridos 50 anos, o repertório do álbum soa em 2002 como sucessão de obras-primas da música brasileira.
Música então inédita de Sueli Costa com letra de Vitor Martins, compositores ainda em processo de consolidação das respectivas obras, 20 anos blue abriu o disco com angústias jorradas em balanço existencial que refletia o clima sombrio do Brasil em 1972, ano de chumbo.
Na sequência, a cantora disparou a artilharia verbal de Bala com bala – samba dos bambas João Bosco e Aldir Blanc – com senso rítmico aguçado em swingueira evocativa do balanço do samba-jazz da década de 1960.
Música lançada em 1971 na voz de Joyce Moreno, Nada será como antes (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos) conectou Elis com o repertório do então novíssimo álbum Clube da Esquina (1972) com a autoridade de ter sido a cantora que projetou Milton Nascimento como compositor ao gravar em 1966 a Canção do sal lançada pelo autor em disco no ano anterior.
Do repertório do Clube da Esquina e dos mesmos Milton e Ronaldo Bastos, Elis abordou Cais com a introdução épica do tema que remeteu ao registro do álbum duplo de Milton e Lô Borges até que o arranjo seguiu linha própria.
Com capa que expôs a cantora em foto de José Maria de Melo, enquadrada na arte de Aldo Luiz, o álbum Elis foi pautado por interpretações mais interiorizadas, ainda que a voz da artista soasse adequadamente para fora no canto de Me deixa em paz (1971), samba dos mesmos compositores, Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza, do samba-soul Madalena (1970), hit nacional de Elis há então dois anos.
A mesma melancolia que conduziu o barco de Mucuripe (1972) – obra-prima da curta parceria dos cearenses Belchior e Fagner – regeu a interpretação bluesy do samba-canção Vida de bailarina (Chocolate e Américo Seixas, 1953), revivido por Elis como homenagem à antecessora Angela Maria (1929 – 2018), intérprete original do tema melodramático e cantora da era do rádio que influenciou Elis. Reminiscência do repertório dessa era radiofônica, a valsa Boa noite, amor (José Maria de Abreu e Francisco Matoso, 1936) fechou o álbum Elis com impetuoso arranjo de cordas.
No tom interiorizado que norteou o canto de Elis no disco, a interpretação da canção Atrás da porta – com arranjo típico de samba-canção – permaneceu antológica ao longo desses 50 anos, um momento de destaque, mesmo dentro do alto padrão de Elis Regina. A cantora incorporou o eu-lírico feminino de Chico Buarque ao dar voz à letra que oferece munição para feministas por expor mulher abandonada e subjugada pelo amor do homem que a deixa para trás, insensível às súplicas da parceira.
Não bastasse ter Atrás da porta, o álbum Elis ainda apresentou a primeira gravação de Águas de março – samba lançado pelo compositor Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) naquele ano de 1972 – na voz da cantora. O registro fonográfico mais famoso do samba seria o feito por Elis com o próprio Tom no álbum que gravaram juntos em 1974.
Contudo, a gravação do álbum Elis é primorosa como tudo que se ouve nesse disco em que a cantora também pôs foco em Olhos abertos, parceria inédita de Zé Rodrix (1947 – 2009) com Guarabyra que emulava o tom humanista de Casa no campo, outra canção da dupla.
Apresentada por Zé Rodrix em festival de 1971, Casa no campo ganhou a voz de Elis Regina ainda em 1971, em gravação editada em single, mas também entrou no repertório de Elis, álbum que mostrou que, sim, é possível alcançar a perfeição na esfera humana, ainda que a grandiosidade do canto de Elis Regina Carvalho Costa pareça vir de outra dimensão.
FONTE :G1 ( POR MAURO FERREIRA)