Anna Paes põe apurada técnica vocal a serviço da requintada obra de Guinga no álbum ‘Você você’
Resenha de álbum
Título: Você você – Anna Paes canta Guinga
Artista: Anna Paes (com arranjos e o violão de Guinga)
Edição: Kuarup
Cotação: ★ ★ ★ ½
♪ Por ser construída com extremo requinte, a obra modernista de Guinga motiva cantoras de técnica apurada a gravar songbooks com o cancioneiro desse compositor carioca que aponta para o futuro enquanto olha para o passado.
Em 1996, a paraense Leila Pinheiro marcou época com Catavento e girassol, álbum bem-sucedido comercialmente que tirou as parcerias de Guinga com Aldir Blanc (1946 – 2020) do gueto a que elas pareciam confinadas. Em 2014, foi a vez de a paulistana Mônica Salmaso abordar a obra anterior de Guinga com Paulo César Pinheiro no sublime álbum Corpo de baile.
A conexão de Salmaso com Guinga foi reforçada em 2018 com a edição do DVD do show Corpo de baile (2015) e com um segundo songbook do compositor, Japan tour 2019, disco lançado em 2020 no Japão – e em 2021 no Brasil – com mix de faixas gravadas ao vivo e em estúdio pela cantora com Guinga (voz e violão), Nailor Proveta (clarinete e saxofone) e Teco Cardoso (flautas e pífano).
No repertório deste segundo disco, Salmaso deu voz a Mello baloeiro (2018), parceria de Guinga com a cantora, compositora e violonista, preparadora vocal e professora de canto Anna Paes.
Paulistana que reside atualmente no Rio de Janeiro (RJ), a cidade natal de Guinga que inspira parte do cancioneiro do compositor, Anna Paes também apresenta songbook do parceiro, com direito ao violão lapidar de Guinga em todas as 11 faixas, arranjadas pelo artista.
O violão é o único instrumento ao se harmonizar com o canto de Anna Paes, que conheceu Guinga em sarau realizado no bairro carioca Jardim Botânico em 2013, três anos antes de a artista apresentar o primeiro álbum, Miragem de Inaê (2016), disco de repertório autoral.
Lançado pela gravadora Kuarup na sexta-feira, 19 de agosto, em edição digital e no formato de CD, o álbum Você você – Anna Paes canta Guinga é o segundo álbum da cantora, tendo sido precedido pelos singles que apresentou as gravações de Neblinas e flâmulas (Guinga e Aldir Blanc, 1996) e Sonhadora (Guinga e Paulo César Pinheiro, 1974), única música inédita de repertório que abarca parcerias de Guinga com Chico Buarque, José Miguel Wisnik e Thiago Amud, embora as composições letradas por Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro predominem na seleção do disco de Paes.
Inédita em disco há 48 anos, Sonhadora é canção de lírica seresteira que evoca o clamor dos trovadores e a inspiração villa-lobiana entranhada na obra de Guinga e também perceptível em Quadrão (Guinga e Paulo César Pinheiro, 1980), música que abre o álbum gravado entre março e abril deste ano de 2022, com produção artística de Sérgio Lima Netto, no Studio Araras, embora a foto da cantora na capa dê a falsa impressão de se tratar de disco ao vivo.
Como Anna Paes conta no texto que escreveu para a edição em CD do álbum, Sonhadora chegou à artista em disco lhe presenteado por Paulo Aragão em 2008 com gravações caseiras de músicas compostas por Guinga com Paulo César Pinheiro nos anos 1970 e transcritas para CD a partir de fita cassete. Algumas dessas músicas eram inéditas e chegaram ao público no já mencionado álbum Corpo de baile, de Mônica Salmaso.
Sem se preocupar com o ineditismo do repertório, Anna Paes apresenta disco que, embora valorizado pela presença de Guinga ao violão e na criação dos arranjos, não resiste às comparações com os antológicos songbooks de Leila Pinheiro e Mônica Salmaso.
A técnica vocal de Anna Paes é apurada. No campo técnico, o álbum Você você – Anna Paes canta Guinga resulta irretocável, inclusive pelas precisas mixagem e masterização feitas por Sérgio Lima Neto. A questão é que falta ao disco o frescor que havia em 1996 na abordagem da obra de Guinga por Leila. Já o canto de Salmaso atingiu em Corpo de baile (2014) profundas regiões emocionais inalcançáveis por Paes, dona de voz bonita, mas sem a mínima originalidade no timbre.
As onze faixas de Você você evoluem na mesma temperatura, sem que o canto da artista atinja, por exemplo, a dramaticidade contida nos versos escritos por Paulo César Pinheiro para Valsa maldita (1977) e Passos e assovios (1979), valsas lançadas em discos das cantoras Márcia e Cláudia Savaget, respectivamente.
Para ouvintes que se deleitam com a técnica e relegam a emoção do canto a segundo plano, Anna Paes soará sedutora ao embarcar na viagem delirante de Valsa pra Leila (Guinga e Aldir Blanc, 1996, ao divagar sobre o amor na valsa Nem cais nem barco (Guinga e Aldir Blanc, 1991), ao seguir sem atropelos o percurso difícil de Carta de pedra (Guinga e Aldir Blanc, 1996) dos graves aos mais altos agudos, ao seguir em segurança por Avenida Atlântica (Guinga e Thiago Amud, 2014) – música apresentada na voz de Ana Carolina em disco do pianista Sergio Mendes, Magic (2014) – e ao dar voz à Canção necessária (Guinga e José Miguel Wisnik, 2011).
Nada está fora do tom, como exemplifica a bela abordagem da música-título Você você (1998) – primeira e por ora única parceria de Guinga com Chico Buarque (autor da letra que pode ser entendida como o sentimento de posse entre um casal, mas que foi escrita sob a perspectiva de uma criança cheia de perguntas ao observar a mãe).
O canto de Você você ao fim do disco deixa nítido o domínio de Anna Paes sobre o cancioneiro complexo de Guinga – proeza que agrega valor ao álbum.
FONTE : G1 ( POR MAURO FERREIRA)