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Restauração gera trabalho e renda no Cerrado

Cerca de 40% dos 12 milhões de hectares que o Brasil se comprometeu a restaurar até 2030, conforme o Acordo de Paris, estão no Cerrado – que tem sofrido com o desmatamento provocado pelo avanço da agricultura em larga escala para a produção de commodities, como soja, milho e algodão, e perdeu 6 milhões de hectares de vegetação nativa nos últimos 10 anos. Mas, se de um lado a savana com a maior biodiversidade do planeta é um dos biomas mais ameaçados no país, do outro abriga pessoas e organizações que batalham por sua recuperação.

Uma delas é a Associação Cerrado de Pé. “O primeiro passo é envolver todo mundo na cadeia de preservação. Para as pessoas sentirem restauração e conservação como aliadas, e não como empecilhos. Isso só é possível com a participação direta das comunidades que vivem na região”, destaca Claudomiro de Almeida Cortes, diretor de Restauração e cofundador da entidade.

O foco da Cerrado de Pé está na coleta de sementes e na restauração. Das 100 famílias que fazem parte da Associação, 80 são quilombolas no território Kalunga, mais especificamente na comunidade do Vão do Moleque, em Cavalcante, Goiás. As demais estão no entorno do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Nos últimos 5 anos, o volume coletado foi de 29 toneladas de sementes, o que gerou renda de mais de R$ 770 mil para as comunidades. 

Recentemente, a partir de uma parceria com o WWF-Brasil e apoio da empresa Reckitt Hygiene Comercial, por meio da marca Bom Ar, a Cerrado de Pé treinou 30 famílias para a coleta de duas toneladas de sementes, necessárias para a recuperação de 20 hectares no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. “Homens ajudam no beneficiamento. Mas entre associados a maioria é mulher. Elas veem na coleta uma fonte de renda capaz de agregar valor à família. Esse trabalho tem ajudado essas mulheres a realizarem seus sonhos”, frisa Cintia de Oliveira Silva Carvalho, presidente da Associação. 

A comunidade do Vão do Moleque é composta por casas simples, algumas construídas de alvenaria e outras com barro e telhado de palha. Em comum, nenhuma possui água encanada. Energia elétrica ainda é uma novidade no local. Para algumas pessoas, só chegou e 2019 e, junto com ela, a internet. Mas foi com a renda da coleta de sementes que muitas pessoas dali tiveram acesso a itens como geladeira, TV e celular. 

Além da possibilidade de aquisição de bens materiais, a qualidade de vida na comunidade melhorou. “Todo ser humano merece tomar café, almoçar e jantar. É um direito básico, um dever e uma obrigação de todo mundo. Todo mundo é ser humano. Num país tão grande e rico, não podemos ter pessoas passando fome. Acredito e continuo acreditando nessa luta da restauração porque vejo o quanto essas famílias evoluíram e o quanto conquistaram”, destaca Claudomiro. 

Envolvimento e fortalecimento das comunidades

O envolvimento direto das comunidades e seu fortalecimento é a base da estratégia de restauração do WWF-Brasil. “A cadeia da restauração é rentável e está se consolidando para ser cada vez mais. O Cerrado, um bioma tão especial, importante e estratégico para o Brasil, não pode ter só uma estratégia de conservação, precisamos urgentemente restaurar o Cerrado em larga escala”, afirma Thiago Belote, especialista em restauração do WWF-Brasil. 

Para as mulheres da comunidade do Vão do Moleque, essa é uma atividade que representa independência e empoderamento. Elas se organizam em grupos e saem para a coleta nas primeiras horas do dia. “Às vezes, a gente fica só dentro de casa e não tira um tempo para fazer aquilo que a gente gosta, então a coleta é um momento de felicidade. Conversamos, trocamos, brincamos e trabalhamos muito”, diz Edelza da Costa Marques, que também é professora. 

Domingas Marques, mãe de Edelza, lembra que esse trabalho ajudou a salvar sua vida. Ela perdeu dois dos três filhos e estava com depressão profunda quando se juntou ao grupo. “Hoje eu consigo sorrir. Fico alegre de ir para as coletas, encontrar minhas amigas”, salienta. “Minha mãe já sofreu muito. Vê-la assim é uma grande vitória”, celebra Edelza.

Os ganhos na comunidade não foram apenas financeiros. “A mentalidade da gente mudou totalmente”, acrescenta Cintia, presidente da Cerrado de Pé, que veio de uma família de agricultura tradicional. Muitas das pessoas que vivem ali passaram inclusive a fazer planos. “Com o dinheiro que eu arrecadar das sementes, vou comprar um computador para minha menina estudar. Ela está terminando o Ensino Médio e quer fazer faculdade. Agora vou comprar um para ela, é só sair o dinheiro da semente”, conta a coletora Geruza Soares Pereira.

A mudança também foi intensa para Emiverton de Sousa Fernandes, vice-presidente da Associação. No passado, Ní, como é conhecido, costumava trabalhar com o corte de árvores. Mas a guinada o fez se tornar referência entre os coletores. É ele quem cuida do galpão que armazena as sementes de toda a comunidade. “Hoje eu não faço mais isso. Se tiver coleta todo dia, vou todo dia. O dinheiro da coleta me ajuda muito, muito mesmo. Além da renda, ajuda a preservar o Cerrado e a levar um pouco do que temos aqui para onde ele foi perdido”, comenta. 

Comercialização das sementes

No começo, há 5 anos, o coletor Edito Costa Serafim desconfiava do potencial do trabalho. “Eu achava difícil, falava: ‘isso aqui não vai dar renda não. Vão vender para quem? Para que lado vai essa semente? Quem vai querer a semente do Cerrado para plantar?’ Mas, hoje, a gente está vendo o que o Cerrado oferece se a gente preservar o máximo possível. Oferece renda e o sustento com a coleta das sementes”, afirma. 
“Antigamente ninguém ia pensar que a gente ia coletar sementes para vender. Hoje, cada um já está preservando a sua natureza porque o Cerrado é sobrevivência pra gente”, afirma a coletora Maria Delice dos Santos Rosa. 

As sementes coletadas pela Cerrado de Pé são comercializadas pela Rede de Sementes do Cerrado, uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) que atua na articulação, no fomento do comércio e na melhoria da qualidade de sementes e mudas nativas do bioma. “O preço das sementes é um preço justo. Quem coloca o preço são os coletores”, frisa Camila Prado Motta, presidente da Rede. 

No começo de cada ano, os coletores se reúnem e avaliam o esforço necessário para coletar e beneficiar cada tipo de semente. O valor é estabelecido de acordo com a disponibilidade nas áreas de coleta e pela dificuldade de coleta, beneficiamento e armazenamento. “As decisões são tomadas em conjunto com os associados”, diz Cintia, presidente da Cerrado de Pé. 

“É de grande importância a tomada de consciência das pessoas, não acreditarem em soja, pasto e criação de gado como única salvação”, salienta Carlos Pereira, presidente da Associação Quilombola Kalunga (AQK). “Essas ações nos fortalecem em parceria com o território e com aquelas famílias que, de fato, estão ali dentro, se nutrindo. As pessoas que estão no território hoje estão, de certa forma, melhor de vida do que aqueles saíram para buscar o pão”.

Pesquisa científica e conhecimento tradicional

Um aliado fundamental do processo de restauração é a união entre a pesquisa científica e o conhecimento tradicional, uma vez que ainda faltam estudos para as mais de 12 mil espécies identificadas no bioma. “Os restauradores, que vão plantar o Cerrado, precisam saber que aquelas sementes vão nascer e que aquilo ali vai funcionar. Todas as espécies comercializadas já foram testadas de alguma forma na semeadura direta. Desde árvores, arbustos, gramíneas e palmeiras, conseguimos compartilhar conhecimento sobre como utilizar essas espécies na restauração”, relata Camila. 

A base de um Cerrado saudável e que respeita suas características naturais, dizem os especialistas, é o plantio de capim nativo e arbustos. “Sem o capim, o que vai manter a água ali? Tudo é um conjunto”, salienta Cintia. Por isso, para participar do projeto, cada coletor recebe capacitação técnica. “Isso é fundamental para o trabalho. Existem vários capins e arbustos que são pouco conhecidos. Mesmo que as pessoas saibam identificar, é preciso saber como coletar, beneficiar, guardar, até chegar a semente pronta para restaurar. Além disso, buscamos desenvolver técnicas que ampliem a capacidade e facilitem o trabalho da coleta e do beneficiamento”, finaliza Claudomiro. 

FONTE: WWF BRASIL

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