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Futebolização dos afetos


Tarde quente de domingo. Morumbi lotado. Os tricolores sonhavam com o título da Copa do Brasil que o clube paulista nunca conquistara. O otimismo era grande. O São Paulo só precisava de um empate. Vencera a primeira partida da decisão no Maracanã. Começa o jogo e o Flamengo parte para o ataque, surpreendendo o time operário de Dorival Junior. Aos 43 minutos, Bruno Henrique marca para o Flamengo. Mas poucos minutos depois, o jovem Nestor acerta um belo chute e empata. Alívio nas arquibancadas. No segundo tempo, o tricolor administra o resultado e conquista o título tão esperado.
A festa no Morumbi ficou por conta dos são-paulinos elitizados. O aumento dos preços dos ingressos na final seguiu a tendência de gentrificação do futebol. O torcedor raiz, pobre, festejou nas imediações do estádio.
Um fato triste nas comemorações: a morte de um torcedor tricolor, Rafael dos Santos Tercilio Garcia, 32 anos, que festejava o título do lado de fora do estádio. Levou um tiro, provavelmente da PM. Fato pouco comentado pela diretoria do clube.
Antes estereotipada como de elite, a torcida cresceu e mudou muito seu perfil socioeconômico, sobretudo depois dos anos 1980 (os menudos do Cilinho) e 1990, na era Telê Santana, quando conquistou muitos títulos internacionais. Atualmente, é a terceira maior do país e foi decisiva na conquista deste título. Abraçou o time mesmo nas derrotas.
Ficar os últimos 15 anos na fila, sem ganhar um título de relevância nacional, tornou os “soberanos” menos arrogantes, mais fanáticos e famintos por títulos. Suas glórias vinham de um passado distante. Com a conquista da Copa do Brasil, o time superou a síndrome de vira-lata que dominava a alma do time nas decisões.
Por ser uma paixão popular, o futebol acende a chama de afetos dos mais variados. Alguns chegam a infartar, outros sucumbem a impulsos bizarros.
A flamenguista Marcelle Decothé parece ter sido atraída pelo espírito da rivalidade esportiva e ultrapassou o limite do decoro. Nas redes sociais, postou comentários estereotipados e xenofóbicos contra tricolores e paulistas. Uma pena! Até porque trata-se de uma ativista do movimento negro que atua há anos na defesa de populações periféricas e vulneráveis. Tem lugar de fala para defender a mulher negra e pobre, maior vítima de preconceito e feminicídio. No entanto, sua história de origem humilde não lhe dá salvo conduto para negar a liturgia do cargo que ocupava. Foi exonerada. Era assessora de Anielle Franco, Ministra da Igualdade Racial do Brasil.
A postagem de Marcelle viralizou nas redes. Foi criticada por muitos progressistas, mas sobretudo por bolsonaristas. Pavimentou a narrativa da extrema-direita que sempre espera deslizes da esquerda para impor suas pautas conservadores e golpistas.
A derrota no campo gerou a desilusão da torcida flamenguista. E Marcelle confundiu seu papel institucional com o de torcedora agindo de forma ingênua, infantil. Uma atitude motivada por um identitarismo pueril e paradoxal. Por ser uma jovem negra, tornou-se alvo da fúria preconceituosa dos fascistas. O erro quando cometido pela elite é muitas vezes normatizado. Quando se trata de uma mulher negra de origem periférica, o julgamento é impiedoso. Este erro, no entanto, pode ser pedagógico para quem como Marcelle aprendeu na luta do bom combate. Que os bons afetos proporcionados pela reflexão da vida concreta estimulem a luta antirracista no futebol.

Mário Teruya

EDITOR CHEFE DO PODCAST PODSOR

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