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O potencial das hortas urbanas na segurança alimentar da cidade de São Paulo

A população brasileira é definitivamente urbana. Só na concentração urbana da cidade de São Paulo, vivem 20,7 milhões de pessoas, ou 47% da população do estado, segundo dados do Censo 2022. Essa configuração desafia qualquer iniciativa de segurança alimentar e nutricional. No dia 22 de setembro, o Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e a organização não governamental WWF-Brasil reuniram especialistas para conversar sobre hortas urbanas, no 1º Simpósio Imaginários para a Cidade de São Paulo: agricultura urbana, políticas públicas e urbanismo social.

Para Paulina Achurra, coordenadora acadêmica do laboratório, as cidades brasileiras têm desafios cada vez maiores, muitos dos quais ainda sem solução. “Acreditamos que a maneira de ter impacto e mudar a situação é por meio do urbanismo social, promovendo o diálogo entre poder público, academia, terceiro setor, sociedade civil e territórios”, disse ela. A crise provocada pela pandemia de covid-19, manifestada no isolamento social e na perda de empregos e renda, intensificou a necessidade de maior conexão com o verde nas cidades. Nesse contexto, o simpósio evidenciou experiências bem-sucedidas de planejamento e implantação de hortas urbanas.

Embora um dos eixos mais conhecidos de atuação do WWF-Brasil seja a agenda de prevenção da ocorrência de desmatamento, o WWF-Brasil imagina que a mudança na sociedade depende de vários eixos, entre os quais sistemas alimentares. “Tentamos diminuir a distância entre quem está produzindo e quem está comendo”, afirmou Ana Carolina Bauer, analista de conservação do WWF-Brasil. “É uma forma de evitar as mudanças climáticas e diminuir o risco da perda de biodiversidade. Porque se produzimos e consumimos nossos alimentos aqui na cidade, não pressionamos a abertura de novas áreas, portanto estamos conservando a biodiversidade e nos alimentando com mais soberania.”

A agricultura urbana e periurbana é uma agenda em ascensão, na opinião de Jessica Chryssafidis, pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (FGVces), em São Paulo. Ela dimensionou o problema da segurança alimentar e nutricional com a projeção de que a população mundial chegará a quase 10 bilhões de pessoas em 2050. “Estima-se que 70% dessa população viverá em áreas urbanas”, ressaltou. “É um número bastante alarmante, que nos faz pensar em reconstruir a sociedade e pensar a cidade como um território para as pessoas.”

Jessica mostrou imagens de um canteiro entre conjuntos de prédios em Osasco, um dos municípios da região metropolitana de São Paulo, com 743.432 habitantes. É uma horta urbana que atravessa um quarteirão inteiro, mantida por sete famílias da região que produzem, se alimentam e vendem para os condomínios vizinhos. Outras áreas de grande potencial, mesmo consideradas as regras restritas para uso produtivo, estão embaixo de linhas de transmissão de energia. As hortas não só fornecem alimentos frescos. “As pessoas passaram a fazer caminhadas nesses locais todos os dias, nem que seja só para se conectarem com a natureza, o que tem claramente trazido inúmeros benefícios para a saúde física e mental dessas comunidades”, comentou Jessica.

Uma das características da agricultura urbana e periurbana é a capacidade de aproximar produção, consumo, distribuição e gestão de resíduos, além de favorecer a resiliência climática e a manutenção de áreas verdes nas cidades. Além disso, segundo Jéssica, “existe um forte potencial de coesão comunitária associada a essas experiências, afinal as hortas passam a ser um local de encontro, de trocas e de criação de vínculos entre vizinhos que muitas vezes não se conheciam”, disse.

A materialização dessa cidade imaginária desafia o poder público e a sociedade a preencher certos vazios institucionais, observou Jessica. Faltam informações sobre os locais que podem se tornar hortas urbanas, seja em terrenos privados, seja em espaços públicos. Os agricultores urbanos não estão contemplados em políticas públicas da agricultura familiar, como o acesso a crédito e as políticas de compras públicas. “A agricultura urbana e periurbana pode entregar para as cidades soluções na dimensão humana, de revitalização da dignidade, socialização, combate à pobreza e reconexão com a natureza”, disse ela.

As iniciativas aparecem nos territórios de diferentes formas: quintais produtivos, cultivo de plantas alimentícias não convencionais (PANCs) e flores comestíveis, hortas terapêuticas, hortas pedagógicas em escolas e hortas socioeducativas em penitenciárias, agroflorestas urbanas e hortas comunitárias, entre outras. Jessica apresentou números da plataforma Sampa+Rural, coordenada pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Urbano de São Paulo: a capital paulista tem 747 unidades de produção agropecuária, 140 hortas urbanas, 240 hortas em equipamentos públicos e 1.225 hortas em escolas. “São Paulo é definitivamente uma das referências em agricultura urbana no Brasil”, reforçou.

Segundo Jéssica, a agricultura urbana deve ser uma agenda estruturante, assim como o tema das mudanças climáticas. Nessa direção, um dos marcos do segmento é o Decreto 11.700, assinado em setembro de 2023, que institui o Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana. O decreto formaliza a gestão interministerial da agenda, articulando quatro diferentes ministérios responsáveis pelo planejamento e gestão dos programas e ações. São eles: Ministério do Desenvolvimento Social, Família e Combate à Fome (MDS), Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). 

Porções de verde na metrópole

Vitória Leão, especialista em projetos dedicados ao tema da agricultura urbana e periurbana, pesquisa formas de estreitar o laço entre quem produz e quem consome alimentos em São Paulo, os chamados “circuitos curtos de comercialização”. “Há o grande desafio de fazer o diálogo entre os diversos municípios nos quais a mancha urbana avança em áreas de produção e em áreas verdes de preservação”, afirmou ela. Para Vitória, essa mancha urbana domina o imaginário de São Paulo: “uma extensão urbana de concreto a perder de vista”.

Curiosamente, a realidade não é tão cinzenta: a área urbana ocupa 26% do território da capital, a maior parte da região metropolitana de São Paulo é de formação florestal e 22% da área dedica-se à agropecuária. “Ou seja, São Paulo é uma metrópole que produz alimentos e ainda preserva as suas áreas verdes, por meio de inúmeras dinâmicas”, constatou. “As áreas verdes preservadas em São Paulo são produto de políticas públicas municipais, estaduais e federais pensadas desde as décadas de 1960 e 1970, que se institucionalizaram e fazem com que São Paulo seja como ela é.”

A relação entre área de conservação e agricultura é direta, na avaliação de Vitória. Ela citou o conceito de agricultura urbana como objeto espacial integrador, defendido pela pesquisadora francesa Sylvie Lardon. “A agricultura urbana é um grande nó dentro ou ao redor da cidade, que confunde o que é urbano e o que é rural, traz ao mesmo espaço quem produz e quem consome e também é fruto de muitas ações públicas”, justificou.

Vitória destacou a característica de pequeno porte da agricultura familiar, ocupando áreas de até 20 hectares e empregando principalmente pessoas da mesma família. “Isso também responde ao fato de que a pressão do solo urbano faz com que as áreas produtivas sejam cada vez menores e cada vez mais intensivas em produção, algo que não acontece só no Brasil, mas no mundo todo”, explicou. “A agricultura familiar em São Paulo é uma agricultura diversa, mas também orientada para o mercado.”

O estudo que Vitória participou, desenvolvido pelo Instituto Escolhas em parceria com Urbem, simulou modelos de unidades de pequena e média produção, características na região, mesclando áreas de vegetação e preservação e espaço produtivo agroecológico voltado tanto para o consumo quanto para a comercialização. Os resultados são animadores. Essa unidade sustentável abasteceria 662 pessoas por ano. Em larga escala, poderia levar alimentos saudáveis à metrópole inteira, gerar cerca de 180.000 postos de trabalho e fortalecer circuitos curtos de comercialização.

Potencialmente, o modelo proposto pela pesquisa poderia abastecer, por exemplo, 899 feiras livres, 17 sacolões e 14 mercados municipais da capital, além de fornecer ingredientes para as mais de 2 milhões de refeições servidas diariamente na rede municipal de ensino da capital. E, não menos importante, ajudaria a garantir a permanência das populações em seus territórios. “É uma demanda que pode caber na metrópole de São Paulo, e só precisamos pensar em como tornar realidade essa cidade imaginária”, instigou.

Determinantes de saúde

A experiência do Programa Ambientes Verdes e Saudáveis (PAVS), da Secretaria Municipal de Saúde da capital paulista, foi sintetizada por Fábio Kinker Caliendo Benzi, gestor local do programa na região sudeste. A semente vem da Lei 8.080/90, que estabeleceu as condições determinantes para a saúde, que incluem alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação, atividade física, transporte, lazer e acesso aos bens e serviços essenciais. O PAVS se insere no contexto do meio ambiente. “24% das mortes globais e 28% das mortes entre crianças menores de 5 anos são devido a fatores ambientais modificáveis”, segundo relatório da Organização Mundial de Saúde de 2016, afirmou Benzi.

Em 2011, por meio da Portaria SMS/GAB Nº 1.573 de 03 de Agosto, que institui o Programa Ambientes Verdes e Saudáveis (PAVS), criou-se o cargo de agente de promoção ambiental (APA), profissional que compõe a equipe de saúde da família nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e fica responsável por realizar as ações do PAVS nos territórios, em conjunto com as equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF) e em consonância com o planejamento elaborado com os gestores locais e regionais do programa, levando em conta as demandas locais. Os seis eixos norteadores do programa são biodiversidade e arborização, gerenciamento de resíduos, agenda ambiental na administração pública, revitalização de espaços públicos, trinômio água, ar e solo e, por fim, horta e alimentação saudável.

Na perspectiva da segurança nutricional, o eixo de horta e alimentação saudável considera os fatores socioculturais da população de cada território, evitando a padronização da alimentação e respeitando a regionalização. As iniciativas abrangem a implantação de hortas comunitárias, uso e disseminação de técnicas agroecológicas, manejo na produção dos alimentos, utilização terapêutica e socializante da horta e incentivo ao aleitamento materno – o primeiro alimento saudável – quando realizadas em Centros de Educação Infantil (CEI).

Resumidamente, o método de trabalho, que parte de um diagnóstico socioambiental, consiste em pesquisar as características do território, fazer o mapeamento, cruzar com os dados de saúde e, a partir das evidências, elencar as prioridades do território. “A questão da horta urbana pode vir do diagnóstico ou das parcerias do território também”, disse Benzi. O diagnóstico permite a definição do tipo de plantas mais adequadas à comunidade – como hortaliças, convencionais, PANCS, medicinais e terapêuticas – e o inventário de materiais necessários. Muitas vezes, a própria comunidade ajuda a captar recursos locais e institucionais.

O PAVS tenta obter indicadores de hábitos alimentares e clínicos, para verificar os impactos na saúde do paciente, explicou Benzi. O envolvimento de adultos e crianças nas hortas desmonta alguns maus hábitos e tem repercussão financeira. “Os alimentos ultraprocessados estão ficando cada vez mais acessíveis e baratos e provocam uma mudança crítica na alimentação”, disse ele. “A ideia não é só falar para crianças e adolescentes, mas interagir com as famílias e integrar todo mundo.”

Ação em Heliópolis e Região

Foi em meio à crise provocada pela pandemia que o projeto de horta urbana amadureceu na União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas). “Nós conseguíamos doação de cestas que tinham basicamente arroz e feijão, sem nenhuma proteína ou verdura”, recorda Cleide Alves, presidente da Unas e integrante do Núcleo Mulheres e Territórios do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. “Estamos no território há 48 anos e trabalhamos com as necessidades. A nossa essência é olhar os problemas e, naquele momento, as famílias estavam sem emprego, passando fome.”

A horta urbana atendia à pauta de direitos humanos e inclusão da associação. “Existe violência maior do que passar fome ou viver em insegurança alimentar?”, questionou Cleide. O projeto Da Horta para Mesa foi apresentado ao Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca). Desde então, o objetivo é formar agentes ambientais na comunidade para a criação de hortas em Centros de Educação Infantil (CEI). Ao mesmo tempo em que suprem as cozinhas dos moradores, esses espaços transformam-se em ferramenta pedagógica, envolvendo os jovens no aprendizado de compostagem, cultivo e gestão de resíduos relacionados à produção de alimentos.

Como as outras ações explanadas durante o simpósio, o projeto da Unas estimula o imaginário de cidades mais sustentáveis no futuro. “Quando essas iniciativas são implementadas nos territórios, vemos as mudanças, os impactos e o poder que elas têm”, arrematou Paulina Achurra.

FONTE: WWF BRASIL

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