Festival chama a atenção para a importância de conservar onças-pintadas
As onças-pintadas estão ameaçadas em todo o continente americano. A redução ainda maior de sua população e eventual extinção pode causar sérios desequilíbrios ecológicos nas regiões em que habitam, impactando, inclusive, a vida dos seres humanos. Mais do que isso: o desaparecimento dessa espécie prejudicaria tradições e expressões culturais milenares, que encontram no maior felino das américas sinônimo de beleza, força, poder e perseverança.
Para buscar formas de diminuir a pressão e recuperar as populações de onças-pintadas no Brasil, especialistas de todo o país, do México e da Argentina se reuniram no Festival da Onça-Pintada, que ocorreu entre 27 e 29 de novembro, em Foz do Iguaçu, no Paraná, e em Puerto Iguazu, na Argentina. O evento foi realizado pelos projetos Onças do Iguaçu (Brasil) e Yaguareté (Argentina), em conjunto com diversas organizações, incluindo o WWF-Brasil, e contou com a participação de cerca de 200 pessoas por dia.
Palestrantes e ouvintes puderam ter uma visão geral da situação da conservação da espécie em cinco biomas brasileiros: Mata Atlântica, Pantanal, Caatinga, Cerrado e Amazônia. Nos Pampas, infelizmente, a onça-pintada está extinta. Também conheceram vários projetos que estão em curso nessas paisagens e compartilharam experiências e conhecimentos.
Entre as principais frentes de ação estão o combate ao desmatamento, queimadas, caça, tráfico de partes dos animais e atropelamentos; técnicas de diagnóstico de conflitos humano-fauna e implementação de medidas de coexistência; restauração de matas e constituição de corredores verdes; monitoramento de indivíduos; e ecoturismo para observação dos animais.
Por que a onça-pintada?
A onça-pintada é uma espécie bandeira porque sua conservação passa pela necessidade de preservação de um ambiente inteiro, de grandes áreas de vegetação e de várias outras espécies, pois esse felino está no topo da cadeia alimentar. “A onça-pintada é o maior predador do continente, nenhum animal a come, mas ela come muitos animais, que comem outros animais, que comem plantas”, pontuou António de La Torre, pesquisador do Projeto Jaguares da Selva Maia, no México.
De acordo com ele, isso é muito parecido com o que acontece com os seres humanos, que são capazes de dominar o ambiente onde estão, caçar as demais espécies que estão em seu ecossistema e é o único que tem a capacidade de matar uma onça. “Aí está essa dualidade entre onças e seres humanos que está representado em muitas culturas”, diz.
La Torre explicou que as onças-pintadas não são apenas um símbolo da nossa biodiversidade na América Latina, mas também da nossa cultura. “Ao longo da história podemos ver que era uma representação de nobreza, de poder, para os Astecas e os Maias, e seguem sendo parte bem importante da identidade e cultura da América Central, onde são vistas como guardiãs da selva, ou para as culturas amazônicas, onde as onças-pintadas vêm unidas com a cosmogonia e com as representações dos xamãs, figuras que afugentam os maus espíritos, curam doença e preveem o futuro”. Ou seja, para de La Torre, perder as onças-pintadas significa também perder uma parte importante da nossos cultura e identidade.
No México, segundo ele, as ameaças são muito parecidas com as do Brasil: caça, conflitos com proprietários rurais, desmatamento para agricultura, obras de infraestrutura. “Tudo isso vem diminuindo e fragmentando seu habitat. Os últimos estudos mostram que em todo o país temos entre 4.000 e 4.800 indivíduos, que estão distribuídos no norte do México, passando pelas Serras Madres até o sul do país, incluindo toda a Península de Iucatã. Mas, assim como no Brasil, temos um grupo muito consolidado que está trabalhando para assegurar a conservação da espécie. Juntos estamos conseguindo melhores resultados do que isolados”, ponderou.
O que se viu no Festival da Onça-Pintada é que o Brasil tem dado bons exemplos quando se trata de união de esforços para a manutenção da espécie. Durante as apresentações, os palestrantes trouxeram resultados bastante positivos de seus trabalhos relacionados à conservação e sobre o engajamento cada vez maior da sociedade. Situações críticas e desafiadoras também foram relatadas, proporcionado o compartilhamento de informações e troca de experiências entre os especialistas para contornar as dificuldades.
Felipe Feliciani, analista de conservação do WWF-Brasil, destacou que “29 de novembro é o Dia Internacional da Onça-Pintada, e o que vimos nesse encontro mostrou que temos muito o que comemorar, que estamos caminhando em uma boa direção. Estávamos precisando muito dessa união e troca. Saímos com as esperanças renovadas, e alertas para o que ainda demanda nossa atenção.”
Troca de experiências
Atualmente os projetos Onças do Iguaçu (Brasil) e Yaguareté (Argentina) – fruto de uma cooperação entre WWF-Brasil, Fundación Vida Silvestre, Parque Nacional do Iguaçu/ICMBio e Parque Nacional Iguazú – são exemplos de conservação de onças-pintadas. Isso porque, desde 2016, as ações monitoram a flutuação da população do felino na região do Corredor Verde de Mata Atlântica (Brasil-Argentina). Os censos bianuais simultâneos nos dois países são um dos maiores esforços para acompanhamento da espécie, tanto em área quanto em período de amostragem.
Entre 1990 e 1995, estimava-se que a região abrigava entre 400 e 800 onças-pintadas, mas no final dessa década essa população apresentou um declínio alarmante, e a estimativa em 2005 era de que em toda a área houvesse apenas cerca de 40 onças-pintadas. No Parque Nacional do Iguaçu, em 2009 restavam entre 9 e 11 onças-pintadas, e a espécie estava perto da extinção local.
“Para reverter esse cenário, deu-se início a um trabalho pioneiro que envolve, além da contagem dos indivíduos, a fiscalização para redução das ameaças ao felino até ações de engajamento, coexistência entre humanos e animais silvestres, manejo e pesquisa e possíveis soluções”, explicou Yara Barros, coordenadora executiva do Projeto Onças do Iguaçu. Isso inclui estudos, diálogos e capacitações com pessoas da região, medidas para proteção da população remanescente de onças-pintadas e realização de atendimento rápido e contínuo de casos de conflito humano-fauna reportados, com ações para mitigar os conflitos.
O resultado disso tudo foi o aumento da população da espécie na última década, dobrando entre 2005 e 2016 (de 40 para 90 animais) e se estabilizando, a partir de 2016, em valores próximos a 100 animais em todo o Corredor Verde. Para o Parque Nacional do Iguaçu, no Brasil, a população média atual é de 25 animais.
Apesar desse incremento, Agustin Paviolo, coordenador executivo do projeto Yagareté, destaca que o Corredor Verde está perdendo área. “O desmatamento está fragmentando a mata em várias partes, e é preciso parar esse movimento. A perda dessa conectividade diminui o espaço de circulação dos animais, prejudica a disponibilidade de presas para sua alimentação e, consequentemente, impede que a população de onças aumente. Além disso, amplia os conflitos entre humanos e felinos, já que, com menos opções, os felinos acabam buscando as criações e animais domésticos para se alimentar”, diz.
O desmatamento no Brasil é causado por diversas ações humanas, como a abertura de campos para a pecuária e a agricultura, para a mineração, extração de madeira, entre outras atividades. Há ainda a ocorrência de queimadas. “Com a perda de habitat e a fragmentação das áreas de mata, também temos visto um grande aumento no número de atropelamentos”, ressaltou Rogério Cunha de Paula, coordenador do CENAP – Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
Expansão dos trabalhos
A partir da experiência positiva de coexistência entre humanos e onças-pintadas obtida na região do Parque do Iguaçu, o WWF-Brasil expandiu sua ação para outras regiões do Brasil onde há maior densidade de onças-pintadas e sua existência está fortemente ameaçada. São elas: o sul do Amazonas, região cortada pela Transamazônica, a Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, e o Pantanal norte (Mato Grosso) e sul (Mato Grosso do Sul).
Isso tem sido feito em parceria com organizações locais, identificando e respeitando a realidade e especificidade de cada região. Felipe Feliciani, analista de Conservação, ressalta que os parceiros locais são estratégicos para a continuação do trabalho em médio e longo prazos, “porque partilham o mesmo território e estabelecem uma relação de confiança com os proprietários rurais e comunidades locais.”
O trabalho envolve incialmente o diagnóstico de conflitos entre humanos e os felinos: onde ocorrem e por quê. Posteriormente são realizadas ações para promoção da coexistência, por meio de uma metodologia de planejamento participativo com as comunidades locais, atores diretamente envolvidos em situações de conflito, formando lideranças para atuarem como multiplicadores.
“Em geral, nas situações de conflito, existem múltiplos grupos de interesse envolvidos, relações de causa e efeito, e isso e não ocorre de forma linear. Compreender, destrinchar essa situação e ouvir, sem julgamento, todos os envolvidos é essencial para se ter sucesso na coexistência”, explicou Silvio Marchini, membro do Instituto Pró-Carnívoros e do Grupo de Especialistas em Coexistência e Conflitos entre Humanos e Vida Selvagem da IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza), que conduziu diversas oficinas de coexistência promovidas pelo WWF-Brasil.
Segundo ele, entre as ações simples para que a onça não se aproxime das propriedades estão: a soltura de fogos de artifício à vista de aproximação da onça-pintada à propriedade; o uso de iluminação acionada por sensor de presença; a recolha do gado à noite e a eletrificação da cerca da propriedade.
Ainda na Mata Atlântica, existe o Programa Grandes Mamíferos da Serra do Mar, que atua nos Estados do Paraná e São Paulo. Segundo o pesquisador Roberto Fusco, o trabalho de monitoramento por armadilhas fotográficas – que são presas a troncos e disparam com o movimento de animais – possibilitou identificar onças-pintadas onde imaginava-se não existirem mais. “A partir de 2018 começamos a trabalhar com monitoramento em larga escala e com isso identificamos uma grande comunidade de médios e grandes mamíferos. Estimamos que hoje existam ao menos 25 onças-pintadas na região”, afirmou.
Conhecer a população das espécies é fundamental para que se possa entender os hábitos das espécies e traçar estratégias de conservação. Ana Carolina Srbek de Araújo, coordenadora do Projeto Felinos, que incide na Reserva Natural Vale, de Linhares, no Espírito Santo, contou que a situação da onça-pintada hoje é bastante crítica na região. Segundo ela, em 2019, calculava-se que no Bloco Linhares-Sooretama existissem não mais do que 20 onças-pintadas.
Porém, atualmente, já não se tem mais uma estimativa. Isso porque tem-se percebido uma redução dos registros feitos pelas armadilhas fotográficas, apesar de serem encontradas pegadas. “Anomalias climáticas, com anos muito secos e outros muito chuvosos, afetaram a dinâmica da vegetação nos últimos tempos. Certamente isso também impactou as onças. Agora estamos desenvolvendo um projeto de suplementação, para reintroduzir onças-pintadas na reserva, inicialmente uma fêmea”, contou.
Pesquisas mostram que atualmente a onça-pintada ocupa pouco mais de 50% da área do Pantanal. Nesse bioma encontra-se a maior densidade demográfica da espécie no Brasil, que está fortemente ameaçada pelos conflitocom criadores de gado, perda de habitat especialmente por incêndios criminosos e grilagens e consequente redução de suas presas.
Ecoturismo e conservação
Nesse cenário, o ecoturismo responsável para observar esses animais tem funcionado como instrumento para a sua conservação. Segundo Fernando Tortato, pesquisador da Panthera Brasil, “onde há pousadas, encontramos mais onças, onde há pecuária, encontramos menos”. Ou seja, o desejo e a curiosidade de ver e compreender sobre esse animal tão lindo e carismático deu origem a um negócio lucrativo, que tem estimulado a sua preservação.
A Associação Onçafari é um exemplo de organização que atua nesse ramo no Pantanal – no Refúgio Ecológico Caiman e no Refúgio da Ilha, no Mato Grosso do Sul – entre outros biomas. “Fazemos o monitoramento dos felinos, indo a campo, colocando câmeras, coletando dados e entendendo a movimentação das onças-pintadas dentro de cada área. Também organizamos as atividades turísticas para tentar viabilizar a observação desses animais”, explicou Stephanie Simioni que coordena a base da Onçafari no Legados nas Águas, que fica na Mata Atlântica, em São Paulo.
Segundo ela, o turismo permite o contato com a sociedade e a realização de um trabalho de sensibilização que só é possível quando a pessoa tem uma experiência na natureza, vê o animal e entende como ele pode ser importante. “Mas além disso, o turismo gera recursos, movimenta toda uma cadeia produtiva e emprega muita gente. As pessoas do entorno conseguem trabalhar como guia, na hotelaria, no transporte. É multifuncional, educa e transforma a realidade das pessoas que vivem ali”, ressalta Simioni.
Já no bioma Caatinga existe o Programa Amigos da Onça, realizado pelo Instituto Pró-Carnívoros, que atua em 35 locais na região das unidades de conservação do Parque Nacional e da Área de Proteção Ambiental do Boqueirão da Onça e seus entornos, no norte da Bahia. “Em 2007, foi registrada pela primeira vez a presença da onça-pintada na região, pelo ICMBio. Com isso, demos início em 2012 ao planejamento e aplicação de ações de conservação desta espécie e da onça-parda, e avaliação dos seus estados de conservação no bioma”, contou a bióloga Cláudia Bueno de Campos, idealizadora do Programa e, atualmente, gestora das Unidades de Conservação do Boqueirão da Onça pelo ICMBio.
O Programa realiza monitoramento de mamíferos terrestres de médio e grande porte, por meio de estudos em campo, com armadilhamento fotográfico e outras técnicas específicas, sendo que duas onças-pintadas e duas onças-pardas já foram monitoradas por radiocolar. Também desenvolve ações para redução de conflitos junto a pequenos produtores rurais, para evitar a predação de rebanhos domésticos pelos felinos; e ações de educação nas comunidades da região voltadas para a conservação dessas espécies.
Localizada da Amazônia central, no Estado do Amazonas, está a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã. Nela o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá realiza diversas pesquisas, manejo de recursos naturais e desenvolvimento social. De acordo com Emiliano Esterci Ramalho, diretor técnico científico do Instituto, as maiores ameaças à onça-pintada na Amazônia são a caça somada à fragmentação da floresta. Mas, felizmente, esse processo ainda está ocorrendo em pequena escala.
“Não vemos a caça como um problema naquela localidade porque ela é oportunista, não intensiva. Muitas vezes ocorre por razões de subsistência. Mas, em outras regiões, existem casos de intenso tráfico internacional de partes do corpo do animal. Se não cuidarmos, também pode se tornar um problema para a gente num futuro próximo”, relatou.
Desmatamento e fragmentação da floresta
Neste momento, a maior preocupação de Ramalho são as grandes obras de infraestrutura, principalmente a construção de estradas, que vão dando origem a vários ramais, gerando desmatamento e fragmentação da floresta. “Nossa grande meta hoje na Amazônia é a criação e manutenção das unidades de conservação. Zerar o desmatamento seria realmente uma enorme vitória. Se conseguirmos manter grandes pedaços de florestas, conseguiremos conservar as onças-pintadas”, defendeu.
Questionado sobre a viabilidade de se atingir essa meta, Ramalho salientou que é preciso ter esperança. “Sem isso a gente não trabalha com conservação. O governo federal atual está com essa intenção e esperamos que siga com ela. Precisamos fazer o desenvolvimento social e econômico respeitando o tempo e as sazonalidades da floresta, aliando a conservação à qualidade de vida e direitos dos povos que ali vivem”, concluiu.
De acordo com Ronaldo Gonçalves Morato, coordenador geral de Conservação e Uso Sustentável da Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais do Ministério do Meio Ambiente, o Brasil detém a maior população mundial de onças-pintadas: mais de 60%, então o país tem uma grande responsabilidade em relação à conservação da espécie. “Identificamos o desmatamento como a principal ameaça e estabelecemos a meta de zerá-lo até 2030. Na Amazônia, em 2023, já houve uma redução de 22%. Também estamos focados no combate ao tráfico de fauna. Além disso, pretendemos restaurar 12 milhões de hectares de matas e florestas”, garantiu.
Entretanto, ele reconheceu que existem desafios políticos que podem trazer dificuldades nesse processo: “Temos que estar sempre negociando, buscando caminhos e soluções que tenham boa aceitação para todos. É uma construção coletiva. Não adianta a gente implementar políticas públicas se não houver uma coparticipação de toda a sociedade”, completou.
Morato acredita que o papel da sociedade civil organizada é fundamental nessa construção coletiva, bem como a do setor privado. “A gente reforça sempre que quem está na ilegalidade nunca vai estar pronto para o diálogo. Essa é uma barreira que precisamos enfrentar e punir. Mas a grande maioria das empresas e indústrias atuam dentro da legalidade, respeitam as normas e as leis”.
Diretrizes sobre conflito e coexistênciaAlém das 36 palestras, durante o Festival da Onça foi lançada a versão em português das Diretrizes da União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN) sobre Conflitos e Coexistência entre pessoas e animais selvagens, um documento essencial para quem trabalha com conservação da fauna. O material foi elaborado pelo Grupo Especialista em Conflitos e Coexistência entre Humanos e Animais selvagens (HWCCSG) da IUCN. O lançamento foi feito por Silvio Marchini e Rogério Cunha de Paula, membros do grupo. A tradução foi feita por Yara Barros com financiamento do ICAS – Instituto de Conservação de Animais Silvestres.
O encontro mostrou os resultados dos projetos de conservação da onça-pintada no Brasil, na Argentina e no México.
FONTE: WWF BRASIL