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Indígenas sobem o tom das cobranças ao governo durante o Acampamento Terra Livre

A cobrança pela urgência das demarcações de Terras Indígenas foi o tom predominante entre os participantes do Acampamento Terra Livre (ATL) 2024, que se encerra nesta sexta-feira, 26, em Brasília. Desde o dia 22 de abril, a maior mobilização indígena do país, em sua 20a edição, contou com uma extensa programação que teve o objetivo de amplificar as vozes dos povos originários e manter em pauta sua luta por direitos.

De acordo com a coordenação do evento, a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), o ATL 2024, com o tema “Nosso Marco é Ancestral: Sempre Estivemos Aqui!”, foi o maior já realizado em 20 anos e reuniu pelo menos 8 mil participantes de mais de 200 povos na capital federal. Nos cinco dias de atividades, que incluíram marchas na Esplanada dos Ministérios, debates e reuniões de lideranças com autoridades, foram comemoradas importantes conquistas em duas décadas de mobilização, mas o movimento indígena também ratificou sua posição contra os ataques a seus direitos no Congresso Nacional e subiu o tom das cobranças ao Governo Federal.

Lideranças envolvidas na organização do ATL 2024 entregaram aos representantes dos Três Poderes uma carta aberta na qual pleitearam o cumprimento de promessas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, demandaram melhorias e investimentos em setores como saúde e educação, e criticaram iniciativas que vão contra os direitos e interesses dos povos indígenas, como a aprovação do Marco Temporal (lei nº14.701/2023) pelo Congresso.  Porém, das 25 reivindicações listadas, 19 foram dirigidas ao Executivo. 

No documento, intitulado “Vinte anos de Acampamento Terra Livre e a Urgência da Ação”, os indígenas se dirigiram expressamente ao presidente Lula cobrando promessas pendentes, incluindo a demarcação imediata de quatro Terras Indígenas e a finalização do processo de demarcação de outras 23. Pediram também mais empenho do Governo Federal para que a agenda anti-indígena do Congresso seja freada – e destacaram a conexão da inação do governo com o aumento da violência contra povos indígenas.

Os temas abordados na carta deram o tom do discurso dos participantes do ATL 2024, nas ruas de Brasília, nas conferências, nas cerimônias, na imprensa e nas redes sociais. Boa parte dos manifestantes mostrava indignação com a  lei 14.701/2023, do Marco Temporal, aprovada pela bancada anti-indígena do Congresso Nacional. 

A lei foi aprovada pelos parlamentares em setembro de 2023, confrontando o  STF, que rejeitou a tese de que os indígenas só teriam direito às terras que ocupavam em outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Embora o presidente Lula tenha vetado parte do projeto, os vetos foram derrubados pelo parlamento.
Frustração e pressão

“Desde que o Congresso aprovou a lei do Marco Temporal, o que estamos vendo é um aumento da violência dentro dos territórios indígenas. Estão matando com arma e estão matando com a caneta também. É um genocídio legislado”, disse a ativista Txai Suruí, coordenadora-geral da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé (que trabalha com 21 povos indígenas da Amazônia), coordenadora do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia e conselheira do WWF-Brasil e do Pacto Global da ONU no Brasil.

De acordo com ela, o presidente Lula, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e outros integrantes do governo se posicionam, em geral, de forma favorável à agenda indígena, mas isso não está se traduzindo em avanços concretos.  

“A gente sabe que as demarcações não estão saindo por causa do próprio governo. É ele que tem o poder de demarcar e não está fazendo isso porque está negociando com nossos direitos. O sentimento geral aqui no ATL é de tristeza e frustração. Porque esperávamos uma ação e o que estamos vendo é nossos direitos sendo negociados”, declarou, em entrevista divulgada pelo InfoAmazônia durante o evento.

Ao contrário do que aconteceu no ano passado, Lula não foi convidado para participar do ATL. Mas a coordenação da Apib enviou uma carta à Presidência da República solicitando que ele recebesse representantes dos povos originários no Planalto. O encontro com cerca de 40 lideranças indígenas ocorreu na tarde de ontem (25), após uma grande marcha em direção à sede do Executivo. Na segunda-feira (22), um grupo foi recebido nos ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e do Desenvolvimento Social (MDS). 

Escalada da violência

Além do combate ao Marco Temporal e a pressão por mais demarcações, o ATL denunciou uma nova escalada de violência contra indígenas. De acordo com levantamento feito pelo Coletivo Proteja, divulgado pela Apib, seis lideranças foram assassinadas no país entre dezembro de 2023, quando a lei entrou em vigor, e o início deste ano.  

“No mesmo período, também foram mapeados 13 conflitos em territórios localizados em sete estados. Um dos assassinatos foi o da pajé Nega Pataxó, povo Hã-Hã-Hãe, durante ação criminosa da Polícia Militar do Estado da Bahia com o grupo ‘Invasão Zero’. A liderança foi assinada na retomada do território Caramuru-Paraguaçu, município de Potiraguá”, afirma a Apib.

Outra liderança que também fez cobranças ao governo foi o  coordenador-executivo da Apib, Kleber Karipuna. “Apostamos nesse novo governo para estar junto com a  gente nessa reivindicação de demarcação de terras. Por mais que o governo tenha homologado 10 Terras Indígenas, muito mais que o feito nos 8 anos anteriores, é uma demanda que não está avançando conforme nossa expectativa, considerando todas as promessas feitas pelo presidente Lula na campanha eleitoral e no início da gestão”, disse ele em vídeo divulgado pelo Ministério Público Federal.

Os povos originários e comunidades tradicionais são reconhecidamente guardiões dos biomas, e as Terras Indígenas demarcadas são um importante fator de controle do desmatamento na Amazônia e de combate à crise climática, como pontuou Karipuna em outra ocasião. “No Brasil, 29% do território ao redor das Terras Indígenas está desmatado, enquanto dentro delas o desmatamento é de apenas 2%”, disse. De acordo com ele, a informação é resultado do cruzamento de dados realizado pela Apib em parceria com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).  

Paralelamente, o MapBiomas também mostra que apenas 1,4% do desmatamento no Brasil em 2022 ocorreu em Terras Indígenas – e essa proporção permanece a mesma desde 1985. Como no país o desmatamento é a principal fonte de emissões de gases de efeito estufa, a demarcação de TIs ainda não oficialmente reconhecidas pelo Estado e a proteção dos territórios já demarcados é fundamental no combate à crise climática. 

Direito não se negocia

Já a influencer indígena Vanessa Neres Kaingang, de Santa Catarina, se manifestou durante a marcha “Emergências Indígenas: nossos direitos não serão negociados”. “A marcha é um recado para o governo atual, de que não aceitamos que nossos direitos sejam negociados em qualquer hipótese. Queremos nossos territórios demarcados, pois nosso marco é ancestral e a gente sempre esteve aqui”, declarou.

“O Governo Federal, os deputados, as autoridades do Brasil, devem reconhecer os direitos dos povos originários. Esse Brasil é a nossa terra que vocês invadiram”, discursou Agnelo Xavante, conselheiro deliberativo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) de Mato Grosso na sessão solene “ATL 20 Anos”, no Congresso Nacional.

A cerimônia, liderada pela deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), aconteceu logo após uma marcha, que saiu do acampamento, no Eixo Cultural Ibero-americano (Complexo Cultural Funarte), e terminou na sede do legislativo. “Por isso estamos aqui neste dia tão importante para nós. A Coiab solicita a demarcação das Terras Indígenas em todo o Brasil e principalmente no estado do Mato Grosso, onde os povos indígenas estão sofrendo muito”, declarou Xavante.

Mobilização e obstáculos

Dinaman Tuxá, coordenador-executivo da Apib-DF destacou a importância do ATL para mobilizar os povos indígenas e pressionar o governo. Segundo ele, após 20 anos de maturação, o ATL também se tornou um espaço de troca de saberes, de experiência e de convivência com outros povos e esse trabalho será contínuo.

“Nós temos total abertura com o presidente Lula. Nós sabemos da força e da vontade que ele tem de nos ajudar. Mas também sabemos que ele é um agente político, que precisa dialogar com diversas frentes, inclusive com os nossos inimigos. A partir desse pressuposto, vamos continuar na linha de frente, fazendo uma cobrança devida, de forma ordeira e organizada, para que se cumpram com os nossos direitos constitucionais”, disse Tuxá.

Os principais obstáculos para que o governo Lula concretize as demarcações incluem a força da bancada ruralista, histórica opositora do movimento indígena, a pressão ostensiva dos governadores na disputa por algumas áreas locais e a composição da frente ampla, que dá sustentação ao governo federal, salientou Tuxá.

Resistência histórica

Durante a assembleia  “Os desafios enfrentados pelos povos indígenas frente à aprovação da Lei do Marco Temporal”, no dia 23 de abril, a defensora pública indígena Aléssia Tuxá, da Bahia, criticou o posicionamento do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que na véspera paralisou cinco ações sobre o Marco Temporal a fim de abrir um processo de conciliação. Ela destacou também as limitações para ação do governo Federal e a importância da mobilização para reverter os retrocessos.

“Quando há paralisação dos processos de demarcação, a violência avança. Mas não é só o STF que resolve essa situação. Nós temos hoje parentes (indígenas) ocupando espaço de poder no âmbito do governo, mas dentro da estrutura de um estado que foi criado para que a gente não caiba”, frisou Aléssia. 

“A história deste país é toda construída em cima do nosso sangue, mas é uma história de resistência. O que nos faz avançar, o que fez o STF no ano passado dizer não à tese do Marco Temporal, o que vai fazer cair a lei do Marco Temporal, o que vai fazer nossas demarcações acontecerem, não são só os advogados indígenas ou nossos parentes ocupando as instituições: é a força do nosso movimento, das nossas lideranças e do nosso povo, marchando por todo do Brasil para se reunir aqui mais uma vez”, afirmou a defensora pública.

Poucos aliados no Congresso

A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, também esteve presente em atividades do ATL. Em coletiva de imprensa realizada durante o evento, na companhia das deputadas Juliana Terena e Célia Xakriabá, no Congresso Nacional, a ministra afirmou que a pauta da demarcação das terras indígenas continua sendo a prioridade dos povos originários no Brasil. 

“É com esse compromisso que a gente chega: para levar essa voz do movimento indígena para a institucionalidade, para o poder executivo. Sabemos que a nossa luta acaba enfrentando poderes muito grandes, políticos e econômicos, mas seguimos firmes com nossa mobilização para dizer que nosso marco é ancestral”, declarou a ministra.

Guajajara também destacou que os indígenas têm “pouquíssimos aliados” no Congresso Nacional, mas que o governo obteve muitas conquistas em 16 meses de mandato, incluindo a criação do MPI. “Conseguimos homologar 10 territórios indígenas. É pouco para o tamanho do passivo que temos no Brasil. Mas não pensem que isso é fácil, é uma grande conquista. Articulamos com cada um todos os dias. Ocupamos esses cargos para fazer incidência direta. É isso que estamos fazendo, porque o MPI chegou para ficar. É isso que chamamos de aldear o estado”, destacou.

Proteção territorial

Além da morosidade para as demarcações de Terras Indígenas, ativistas e manifestantes  também citaram decepção com a execução de outras políticas do Governo Federal que eles acreditaram que seriam mais céleres, em especial as políticas de proteção territorial, fundamentais para levar segurança aos povos originários.

Durante a assembleia “Avanços e Desafios na Implementação da  Política de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI)”, Barbara Tupiniquim, da Apoinme, defendeu que os povos indígenas se apropriem das políticas públicas de proteção territorial.

“Precisamos das câmaras técnicas de monitoramento, de proteção dos nossos territórios e conservação das nossas florestas. Mas, neste momento, precisamos falar principalmente de regeneração dos nossos territórios. De recuperação de terras degradadas por conta do garimpo, das invasões, das monoculturas e do desmatamento. O desafio aumentou e por isso precisamos priorizar a PNGATI”, afirmou.

Ao longo do debate, os participantes indígenas defenderam o financiamento de planos de gestão territorial para combater o avanço da mineração industrial e do garimpo em Terras Indígenas e a recuperação dos territórios indígenas contaminados pelo mercúrio utilizado no garimpo ilegal. Foi discutido também o incentivo às alternativas econômicas sustentáveis e a implementação de medidas para eliminar os impactos da cadeia de produção e exportação de commodities nos territórios indígenas.

Energia limpa

A questão da transição energética foi destacada por Paulo Tupiniquim, coordenador geral da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme). De acordo com ele, a organização levou 30 ônibus com cerca de 1.500 pessoas a Brasília. “Na tenda da Apoinme tivemos uma mesa para debater a questão dos combustíveis fósseis, dizendo que nosso território não é usina. Foi um debate rico, mostrando o impacto das grandes petrolíferas nos territórios indígenas”, declarou. 

O tema também foi abordado diretamente na carta do ATL 2024 às autoridades, que defendeu o incentivo às energias renováveis que previnam e reparem danos socioambientais, com o devido respeito aos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Segundo o documento, a produção de energia limpa deve incluir entre as salvaguardas o controle público do uso da terra, a obrigatoriedade de realização da consulta prévia, estudos de impactos ambientais, o monitoramento dos empreendimentos e a reparação integral dos danos causados.

Além da Apib e da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), participam da organização do ATL 2024 a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul), a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sudeste (Arpinsudeste), a Comissão Guarani Yvyrupa, o Conselho do Povo Terena e a Assembleia Geral do Povo Kaiowá e Guarani (Aty Guasu). 

FONTE:WWF BRASIL

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