Reconhecimento: SP celebra pela 1ª vez Dia da Trabalhadora Doméstica e de Cuidados
Em abril de 2025, o estado de São Paulo celebra pela primeira vez o Dia Estadual da Trabalhadora Doméstica e de Cuidados, instituído pela Lei nº 17.948, sancionada em 19 de junho de 2024. A data escolhida, 27 de abril, já constava no calendário paulista desde 2010, quando a Lei nº 14.223 instituiu o Dia da Empregada Doméstica. A nova legislação traz uma mudança significativa: mais que uma atualização no nome, trata-se de um gesto político de reconhecimento da complexidade e da dignidade desse trabalho.
A alteração na nomenclatura rompe com um passado de estigmas e amplia o olhar sobre a profissão. Ao incluir o termo “cuidados”, a nova lei evidencia o papel fundamental dessas trabalhadoras na sustentação da vida cotidiana – não apenas em tarefas domésticas, mas também no cuidado com crianças, idosos, pessoas com deficiência e com a própria manutenção dos lares. Além disso, a palavra “trabalhadora” reforça a identidade profissional da categoria, ainda marcada por relações informais, afetivas e hierárquicas herdadas de um passado escravocrata.
Conquistas no Parlamento
A conquista é resultado da atuação da deputada estadual Ediane Maria (Psol), primeira trabalhadora doméstica eleita para a Assembleia Legislativa paulista. Filha e neta de empregadas domésticas, Ediane transformou sua trajetória de vida em motor de mudança política. “A gente tá fazendo um mês inteiro de visibilidade das trabalhadoras domésticas e de cuidados no estado de São Paulo, algo inédito em 190 anos de Assembleia”, destacou a parlamentar. Para ela, reconhecer oficialmente a data é um passo importante para que a sociedade encare o trabalho doméstico como uma profissão com direitos, e não como uma extensão do papel da mulher na casa dos outros.
Apesar da promulgação da PEC das Domésticas, em 2013, a informalidade ainda predomina na categoria. Dados levantados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, apontam que 74% das trabalhadoras seguem sem carteira assinada, muitas ganhando menos que o salário mínimo. “São mulheres que trabalham para comer, para sobreviver. A maioria são mulheres negras. É preciso garantir que nenhuma delas viva com menos do mínimo”, complementa Ediane.
Outro avanço destacado por Ediane foi a criação de uma Frente Parlamentar que debate o tema na Casa, a primeira do país voltada especificamente para essa pauta. O espaço reúne movimentos sociais, sindicatos e especialistas para formular propostas, fiscalizar políticas públicas e pressionar por mais investimento em áreas como educação, assistência social e fiscalização das relações de trabalho.
A atuação da deputada também tem levado outros parlamentares a olharem para o tema. Segundo ela, hoje há mais de 120 iniciativas legislativas ligadas direta ou indiretamente às trabalhadoras domésticas em tramitação na Alesp – muitas delas assinadas por colegas de diferentes espectros políticos. “É surpreendente e positivo. Mostra que estamos conseguindo furar a bolha e fazer com que o trabalho doméstico seja visto como central na economia e na vida social do país.”
Para Ediane, além de legislar, é preciso escancarar as desigualdades que sustentam a precarização da categoria. Ela cita como inspiração a trajetória de Laudelina de Campos Melo, pioneira na organização das trabalhadoras domésticas no Brasil. “Laudelina fundou o primeiro sindicato em Campinas, depois de ver sua própria mãe ser agredida dentro da casa dos patrões”, relembra. “Ela viu mulheres negras idosas sendo despejadas por não conseguirem mais executar o trabalho. Essa luta vem de muito tempo, e a gente está aqui hoje porque muitas vieram antes de nós.”
A longa estrada até aqui
A história da luta das trabalhadoras domésticas no Brasil passa, inevitavelmente, por Laudelina de Campos Melo. Filha de ex-escravizados e militante do movimento negro, ela fundou, em 1936, a primeira associação da categoria no país. Sua atuação articulava a formação política, educação e cultura, e transformava a organização sindical em espaço de resistência e consciência coletiva.

“Foi a partir do trabalho de base realizado por Laudelina que as trabalhadoras domésticas começaram a se enxergar como sujeitas de direitos”, explica Mirelle Lima, historiadora pela Unifesp que pesquisa a trajetória da militante. “Ela fazia questão de destacar que o trabalho doméstico é uma profissão como qualquer outra e que deve ser respeitado como tal.”
Hoje, essa luta iniciada há quase 100 anos por Laudelina continua. Apesar de avanços importantes – como a PEC das Domésticas, de 2013, que garantiu à categoria direitos básicos como jornada de trabalho de 44 horas semanais, FGTS obrigatório e seguro-desemprego -, ainda há um abismo entre o que está na lei e o que se pratica.
Ainda segundo dados da Pnad Contínua de 2024, o número de trabalhadores domésticos no Brasil é de 6 milhões de pessoas. Contudo, cerca de três a cada quatro profissionais ainda trabalham de maneira informal, sem o registro em carteira e sem acesso aos direitos assegurados pela legislação.
Cuidar é trabalho
Com o novo nome, a Lei paulista coloca o cuidado no centro do debate do 27 de abril. Essa escolha ecoa discussões contemporâneas sobre o chamado “trabalho reprodutivo” – aquele que garante que outras pessoas possam viver, trabalhar, estudar e produzir.
“O cuidado, majoritariamente desempenhado por mulheres negras e pobres, é uma das bases invisíveis da economia brasileira”, afirma Mirelle. “Invisíveis, mas fundamentais: são elas que seguram a ponta quando o Estado falha, quando o mercado exclui e quando a desigualdade de gênero e raça se faz presente”, conta a pesquisadora.
Para ela, a nova lei representa um marco simbólico importante: “Nomear é reconhecer. Ao trazer o cuidado para o centro da política pública, o estado reconhece que esse trabalho tem valor – e que esse valor precisa ser traduzido em direitos, não apenas em afeto ou gratidão”, completa a pesquisadora.
Ao dar visibilidade a essas profissionais, o Dia Estadual da Trabalhadora Doméstica e de Cuidados se torna também uma reflexão sobre os laços de afeto, desigualdade e exploração que ainda moldam essa relação no imaginário social brasileiro. A data aponta para um futuro em que o cuidado seja valorizado como trabalho – com direitos, salário justo, proteção social e, sobretudo, respeito.
FONTE: ALESP