Fundo de Quintal é biografado em livro que historia a criação e a evolução do grupo que mudou o samba
♪ Na contracapa do livro Fundo de Quintal – O som que mudou a história do samba, Ubirajara Félix do Nascimento – o Bira Presidente, como o ritmista é conhecido nas rodas de samba da cidade natal do Rio de Janeiro (RJ) – revela que muita gente procurou os integrantes do Fundo de Quintal para escrever a biografia do grupo carioca.
Ninguém obteve a unanimidade dos sambistas, exceto Marcos Salles, jornalista, roteirista, produtor e diretor de shows. Coube então a Salles a missão de historiar a gênese, a evolução e a revolução do samba do Fundo de Quintal em alentada biografia lançada neste mês de dezembro pela editora Malê.
Com 448 páginas e várias fotos, o livro Fundo de Quintal – O som que mudou a história do samba documenta história de resistência que se mistura com as trajetórias de bambas como Almir Guineto (1946 – 2017), Arlindo Cruz, Beth Carvalho (1946 – 2019), Jorge Aragão, Jovelina Pérola Negra (1944 – 1998), Luiz Carlos da Vila (1949 – 2008), Sombrinha e Zeca Pagodinho, entre muitos outros.
Mesmo quem nunca integrou o grupo formalmente bebeu da fonte límpida que gerou samba da melhor qualidade para intérpretes como Beth Carvalho – pioneira ao projetar no álbum De pé no chão (1978) o som e o samba do Fundo de Quintal para fora da quadra do bloco carioca Cacique de Ramos – e Zeca Pagodinho, este parceiro de Arlindo Cruz, bamba presente em uma das formações iniciais do grupo.
Formalmente, o Fundo de Quintal teve até 2022 nada menos do que 19 cantores e/ou músicos, reunidos na fotomontagem exposta na capa do livro.
Embora oficializado como grupo a partir de 1980, as origens do Fundo de Quintal remontam a 1976, ano em que Bira Presidente, Sereno e Ubirany Félix do Nascimento (16 de maio de 1940 – 11 de dezembro de 2020) já comandavam semanal roda de samba na quadra do Cacique de Ramos, bloco carnavalesco fundado em 1961. A quadra era o QG de sambistas então jovens e desconhecidos fora dessa quadra situada em Ramos, bairro do subúrbio da cidade do Rio de Janeiro (RJ).
Na biografia do grupo, Marcos Salles mostra como o grupo resistiu diante de sucessivas saídas de integrantes, por desavenças – caso de Neoci Dias (1937 – 1981), reverenciado pelos remanescentes como grande partideiro – ou por ambição de construir carreira solo, caso de Almir Guineto. Ou mesmo por se sentir inadequado na roda viva da indústria da música, caso de Jorge Aragão, então decidido a somente atuar nos bastidores como compositor.
“Em vários grupos, quando sai um, é difícil de continuar. Mas o Fundo de Quintal não é um grupo, é uma marca”, relativiza Bira Presidente em depoimento dado a Marcos Salles e reproduzido na página 88.
Indo além do ambiente das rodas, Salles expõe na biografia os problemas de saúde que tiraram a voz, mas não a vida, de Cleber Augusto – integrante do Fundo de Quintal de 1983 a 2003 – e revela no livro que o vocalista Mário Sérgio (1958 – 2016) talvez pudesse ter continuado em cena se tivesse dado a devida atenção a um gânglio inchado, sinal de linfoma diagnosticado tardiamente.
Contudo, o que prevalece são histórias saborosas sobre a criação dos discos e sobre a sonoridade do grupo, revolucionário por inserir instrumentos como o banjo, o repique de mão e o tantã nas rodas.
Uma dessas histórias é sobre a gravação de Parabéns pra você (Mauro Diniz, Sereno e Ratinho, 1985), sucesso do quinto álbum do Fundo de Quintal, Divina luz (1985). Esse samba invadiu as FMs – território até então nunca pisado pelo grupo – porque, com a anuência do produtor musical Milton Manhães, o tecladista Julinho Teixeira inseriu cordas sintetizadas no arranjo que também tinha baixo e bateria.
A questão é que essa inserção foi feita à noite, sem conhecimento dos irmãos fundadores do grupo, Bira Presidente e Ubirany, principais guardiães das tradições inovadoras do Fundo de Quintal. Ao ouvirem a gravação de Parabéns pra você na manhã seguinte, os irmãos estranharam, mas foram convencidos de que a mudança na sonoridade contribuiria para amplificar o som do grupo sem descaracterizá-lo. O que de fato aconteceu.
Os anos se passaram, outros grupos vieram, o pagode passou a designar outro tipo de samba a partir dos anos 1990, mas o Fundo de Quintal resistiu e permaneceu como marca forte, um selo de qualidade do samba carioca. Marcos Salles documenta no livro a caminhada do grupo em períodos de menor visibilidade na mídia, o que somente agrega valor a uma biografia que precisava ser escrita. E foi.
FONTE; G1 ( POR MAURO FERREIRA)