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Projeto Tamo de Olho defende a natureza e povos tradicionais do Cerrado

Com dados de satélite, ações de litigância e organizações de base, iniciativa luta por comunidades afetadas por desmatamento

O desmatamento produzido pelo agronegócio no Cerrado tem consequências catastróficas para as comunidades tradicionais que dependem do bioma para sobreviver. O poder econômico e político por trás da voraz expansão de fazendas e de empreendimentos não deixa chances de reação para as populações locais. Em uma luta desigual, e muitas vezes invisível para o restante da sociedade, o lado mais fraco é sempre o das comunidades de quilombolas, de geraizeiros, de vazanteiros, de quebradeiras de coco, de ribeirinhos, de pescadores artesanais e de fundos e de fechos de pasto, entre outros, além dos mais de 80 povos indígenas que vivem na savana mais biodiversa do planeta. 

Para ajudar a mudar essa realidade, diversas organizações que atuam no Cerrado, incluindo o WWF-Brasil, se uniram para criar o projeto Tamo de Olho, que busca identificar sistematicamente os casos mais emblemáticos de desmatamento relacionados a violações de direitos de povos tradicionais. O objetivo principal é apoiar as comunidades em ações de incidência jurídica e política junto aos órgãos públicos do Sistema de Justiça e dos poderes Executivos e Legislativos. 

A iniciativa, lançada em 2021, tem a participação do WWF-Brasil, do ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza), da Rede Cerrado, do Instituto Cerrados e do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), além da colaboração do Observatório do MATOPIBA e da Universidade Federal de Brasília (UnB). 

Embora tenha abrangência em todo o Cerrado, os trabalhos se concentram especialmente nos Estados do MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), região que é considerada a principal fronteira de expansão agrícola no Brasil e uma das grandes frentes de destruição de ecossistemas do mundo.  Para se ter uma ideia, esses quatro Estados juntos contribuíram com mais de 80% da área desmatada no bioma em fevereiro de 2022. 

Um dos biomas mais ameaçados no planeta, o Cerrado já teve mais da metade de sua área original desmatada. De acordo com o advogado Marcelo Elvira, analista de Políticas Públicas do WWF-Brasil e um dos coordenadores do Tamo de Olho, além dos impactos brutais na biodiversidade e no equilíbrio climático global, o desmatamento do Cerrado também afeta severamente as comunidades tradicionais locais, afetando sua segurança alimentar e os recursos hídricos dos quais elas dependem. 

“Grande parte dos conflitos no Cerrado têm origem na grilagem de remanescentes de áreas nativas protegidas, onde vivem comunidades tradicionais”, diz Elvira. Segundo ele, os proprietários fazem a declaração de posse de suas propriedades e, na hora de indicar a reserva legal, incluem áreas de comunidades que ainda não conseguiram reconhecimento. “Muitos contratam seguranças armados, impedindo que as comunidades continuem utilizando as áreas”, explica. 

Violência e destruição

Dilvanilce Chagas, moradora de uma das comunidades geraizeiras do Cerrado, a São Marcelo, no município de Formosa do Rio Preto, na Bahia, conta que cresceu testemunhando a violência dos conflitos com a fazenda Cana Brava.  

“Eu mesma já vi várias vezes animais serem mortos ou lavouras devastadas pelo correntão. É triste. Assim como esses animais, que vão se extinguindo, a natureza está sendo devastada”, afirma Dilvanilce. Ela conta que, no ano passado, a casa de seu irmão e de outras famílias foram arrasadas, em uma área de conflito com a fazenda. “Ficaram com a roupa do corpo”, lembra. 

“As famílias geraizeiras não podem ser expulsas dos seus territórios. Elas são cuidadoras da natureza, da fauna e da flora. Essas comunidades vivem de maneira coletiva, do pequi, do buriti, da mangaba, do Cerrado. Nossos brejos precisam de nós porque é de lá que vem a nossa água”, diz Dilvanilce. 

Jamilton Santos, conhecido como Carreirinha, também é morador de uma comunidade tradicional da Bahia, na área de Fecho de Pasto de Gado Bravo. Ele conta que, antes da chegada do agronegócio à região, que fica em Correntinha, no oeste baiano, as comunidades colhiam tudo o que plantavam. 

“Com a chegada do agronegócio, há 30 anos, com o modelo implantado, a gente vem sofrendo esses impactos ambientais, com a questão do secamento das nascentes”, afirma Carreirinha. Em mais de dois séculos de existência, segundo ele, a comunidade manteve o bioma intacto. “Temos um modelo próprio de viver e cuidar do Cerrado. Estamos resistindo. Mas muitas comunidades tradicionais não resistiram e hoje viraram vilas cujos territórios foram tomados pelo agronegócio”, alerta. 

Casos como os de Dilvanilce e Jamilton ilustram o drama vivido por comunidades do Cerrado, especialmente no MATOPIBA. Enfrentar o desmatamento e seus impactos nas comunidades tradicionais, porém, é uma tarefa hercúlea, considerando a extensão do bioma, os imensos índices de desmatamento e a miríade de conflitos espalhados pelo território.  

Definindo prioridades

O projeto Tamo de Olho começou a ser idealizado em 2020, com o objetivo de traçar estratégias para a identificação de casos prioritários para incidência jurídica e política. Segundo Elvira, embora inicialmente o desenvolvimento dessa estratégia partisse de um olhar jurídico, logo ficou claro que os alertas de desmatamento fornecidos pelos sistemas de monitoramento por satélite poderiam dar uma contribuição preciosa à identificação de casos prioritários para a ação. 

“O projeto se organiza em torno de cinco eixos. O ponto de partida é a identificação dos casos concretos, em seguida geramos os dados a partir de mapas de desmatamento. O passo seguinte é qualificar esses dados. A partir daí, estabelecemos uma estratégia de incidência política e jurídica. Por último, desenvolvemos uma estratégia de comunicação”, explica Elvira. 

Como o volume de alertas de desmatamento é muito grande no Cerrado, foi preciso construir uma ferramenta capaz de dimensionar os esforços de advocacy. Com parceiros de organizações que atuavam no bioma, foi possível criar critérios para o mapeamento e ranqueamento dos casos para incidência jurídica e política. 

Dados em profusão

“O número de alertas de desmatamento no Cerrado é uma enormidade e o bioma tem extensão comparável à da Europa Ocidental. Foi preciso desenvolver critérios para selecionar, entre milhares de casos, aqueles no qual a incidência seria viável”, afirma Yuri Salmona, diretor do Instituto Cerrados, um dos responsáveis pela plataforma de monitoramento de desmatamento que está sendo integrada ao Tamo de Olho. 

Salmona salienta que esse trabalho é feito “por cima e por baixo”, ou seja, a partir dos satélites – com dados de desmatamento gerados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e qualificados pelo MapBiomas – e a partir do grupo de trabalho que envolve a Rede Cerrado e atua no território, em parceria com um enorme conjunto de organizações de base.  

“Cruzamos as informações sobre o desmatamento – considerando sua extensão e se afetam comunidades tradicionais e unidades de conservação, por exemplo – e os relatos, obtidos juntos às organizações de base, sobre situações críticas de conflito. Com isso, desenvolvemos critérios para atuar”, conta Salmona. De acordo com ele, a plataforma foi criada para ser utilizada com facilidade em análises que podem ser customizadas.  

“Os dados são todos processados em nuvem. Nossa plataforma usa uma massa enorme de dados públicos que já existem, facilitando o cruzamento entre eles”, pontua. Os parâmetros utilizados na plataforma incluem, por exemplo, a localização de áreas protegidas, terras quilombolas e indígenas, clusters da agroindústria e regiões de conflitos. Assim, a partir dos bancos de imagens de satélite e das informações de incidência de grupos regionais que atuam diretamente nas áreas de conflito, os parceiros do Tamo de Olho conseguem obter critérios objetivos para seleção dos casos a serem priorizados. 

Ministério Público

De acordo com o advogado Guilherme Eidt, do ISPN, um dos objetivos é que esse mapeamento seja a porta de entrada para a atuação do Ministério Público nos Estados do MATOPIBA. O Tamo de Olho atua junto ao órgão por meio da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa). O objetivo é criar um fluxo para identificação sistemática de casos de litigância, a fim de reduzir o tempo de resposta dos promotores em campo. 

“O Ministério Público é um ator chave, pois tem a obrigação de dar encaminhamento quando recebe um alerta. Mas não seria racional inundar os promotores com casos sem que eles pudessem dar vazão. Por isso era tão importante ranquear os casos mais emblemáticos. Também dialogamos com o Ministério da Justiça, a delegacia de combate a crimes ambientais da Polícia Federal e o Ibama, por exemplo”, explica Eidt.  

Quando o poder público não é capaz de dar uma resposta, as ações de litigância se tornam uma ferramenta fundamental, destaca Eidt. A apoio a essas ações, porém, é realizado com máximo respeito aos atores locais, que já oferecem suporte para organizações de base que atuam diretamente no território. 

“Não entramos com ações contra ninguém. Nós temos esse cuidado de estabelecer uma relação política com os atores locais para contribuir estrategicamente com ações de litigância, participando do processo na condição de amicus curiae, por exemplo. Foi o que aconteceu no caso da Fazenda Estrondo, no oeste da Bahia”, diz Eidt. 

Caso emblemático

O caso do megacomplexo de fazendas Estrondo, ao qual se refere o advogado, faz parte de um dos principais resultados do Tamo de Olho no Cerrado baiano. Um estudo realizado pelo Imaterra, em parceria com a UFBA (Universidade Federal da Bahia), com apoio do WWF-Brasil e do ISPN, mostrou que autorizações de desmatamento têm sido expedidas pelo órgão ambiental da Bahia mesmo que os solicitantes não cumpram os requisitos legais. 

A análise de uma amostragem de dezesseis processos administrativos do Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos), de onde constam Autorizações de Supressão de Vegetação nativa mostrou que todos os processos tinham irregularidades que atentam contra a lei. Entre setembro de 2007 e junho de 2021, o governo estadual concedeu 5.126 autorizações para supressão de vegetação em todos os biomas, que totalizam uma área de 992.587 hectares.  

As irregularidades incluem conflitos com comunidades tradicionais, uso de técnicas para captura de fauna que podem ser fatais e pareceres assinados por servidores sem qualificação técnica, entre outras falhas.  

“No caso da fazenda Estrondo, campeã do desmatamento na região, já havia uma organização entrando com uma ação pedindo a suspensão do desmatamento. O juiz da comarca negou, mesmo com toda a documentação mostrando falta de conformidade com a lei”, frisa Eidt. “Nós nos habilitamos como amicus curiae, em um agravo, mas ele perdeu o objeto porque o desmatamento já foi consumado. Orientamos os atores locais a entrar com uma ação civil pública pedindo reparação de danos, motivando-os com apoio técnico e jurídico – sempre reforçando o protagonismo das organizações locais”. 

A análise feita pela equipe do Tamo de Olho mostrou que a expansão do agronegócio no oeste da Bahia ocorreu, em grande parte, em territórios considerados tradicionais, mas que ainda não estavam assegurados pelo Estado, gerando grandes conflitos sociais na região.  

“Muitas dessas terras são devolutas e alguns empreendimentos de agronegócio estão associados à grilagem para ocupação de terras”, diz o documento. Mas o problema não se limita ao oeste da Bahia. Eidt cita casos em que o Tamo de Olho já apoiou ações de litigância também no Piauí e no Tocantins. “No Tocantins, percebemos que a pressão política é muito grande. Ouvimos relatos de gente que tem atribuição de fiscalização no Estado, mas tem sua atuação limitada pelo poder econômico, senadores, deputados e gestores locais, que impedem o prosseguimento dos processos”, acrescenta Eidt.  

Capilaridade no território

No Projeto Tamo de Olho, o WWF-Brasil e o ISPN atuam fortemente na incidência jurídica e política, enquanto parceiros como Ipam e o Instituto Cerrados contribuem com apoio na obtenção de dados georreferenciados – e o Imaterra atua especialmente na qualificação desses dados. Enquanto isso, a Rede Cerrado lidera outra parte fundamental do projeto: organizar por meio de um grupo de trabalho as informações trazidas das organizações parceiras que atuam diretamente no território. 

“Nosso trabalho é conversar com as comunidades que estão na ponta. A rede é formada por mais de 60 organizações de base comunitária e a nossa principal contribuição para o Tamo de Olho é essa grande capilaridade”, afirma Kátia Fávila, diretora-executiva da Rede Cerrado. Segundo ela, antes de fazer parte do Tamo de Olho, a Rede Cerrado já contava com uma frente de atuação e incidência política voltada à defesa dos povos tradicionais. Essa atuação em advocacy, porém, era mais voltada ao Congresso e ao Executivo, e não à judicialização dos casos.  

“Mas, nos últimos anos, com a gestão anterior no governo Federal, os conflitos se agravaram e as coisas foram ficando cada vez piores, em um nível jamais visto. Havia uma séria ameaça de que, com tamanha aceleração do desmatamento, o Cerrado simplesmente deixasse de existir. Por isso, decidimos que era preciso interferir no Judiciário”, explica Kátia.  

De acordo com ela, quando um desmatamento é identificado, isso indica que haverá outros na mesma região. Judicializar esses casos é uma forma de evitar os novos desmatamentos e criminalizar os autores. O Tamo de Olho, segundo ela, foi o caminho para agregar à Rede Cerrado essa dimensão de judicialização.  

“O que nós idealizamos foi esse panorama em que a gente conseguisse não apenas ter uma visão objetiva, a partir dos dados de satélites, mas que esses dados pudessem conversar com quem está na ponta, vivendo as situações. É um alargamento do olhar, que permite ver de que maneira a vida do cidadão se reflete em dados macro”, afirma. 

O Tamo de Olho também contribui para que a rede possa levar mais informações às comunidades, incluindo orientações sobre seus direitos, para que seja possível barrar os ataques de mineradoras e grandes empresas do agronegócio às populações tradicionais. “Estamos o tempo todo trabalhando na construção de processos de protocolos de consulta às comunidades. Procuramos empoderar essas comunidades, reforçar a identidade delas e valorizar a proteção do território para que elas possam resistir.” 

Com dados de satélite, ações de litigância e organizações de base, iniciativa luta por comunidades afetadas por desmatamento

FONTE: WWF BRASIL

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