Presidente usa sua caneta para evitar retrocessos ambientais – temos que comemorar
Durante os últimos anos assistimos, assustados, reiteradas ameaças feitas pelo então Presidente da República Jair Bolsonaro de que usaria sua “caneta bic” para destruir a legislação e as instituições ambientais. Seu objetivo era impor ao país, de forma autoritária, o cenário de “liberou geral” que havia prometido durante a campanha.
Essa determinação foi assimilada por seus subordinados, que passaram a implementá-la. O então Ministro de Meio Ambiente, Ricardo Salles, ficou famoso quando foi flagrado afirmando, numa reunião ministerial, que se deveria aproveitar a tragédia humanitária da pandemia para “passar a boiada” e assim enfraquecer o arcabouço legal construído por décadas. Seu método, segundo ele mesmo, seria o “parecer-caneta”: com base num parecer jurídico encomendado, ele afrouxaria as regras de proteção ambiental com sua própria caneta. Um de seus primeiros alvos foi a legislação que protege a Mata Atlântica: por meio do Despacho nº 4.410/2020, ele aprovou uma interpretação jurídica enviesada que dispensaria a restauração de 330 mil hectares (área equivalente a duas vezes a do município de São Paulo) de matas ciliares justamente no bioma mais devastado do país.
Pois agora os ventos mudaram e podemos respirar um pouco mais aliviados. Em pleno Dia do Meio Ambiente (05/06) o Presidente Lula usou sua caneta para vetar diversos dispositivos que tinham sido incluídos pela Câmara dos Deputados na MP 1150 com o intuito de facilitar o desmatamento da Mata Atlântica, liberar a ocupação de áreas de risco, enfraquecer a proteção de unidades de conservação e permitir o acesso ao crédito para produtores rurais que desrespeitam a legislação ambiental.
O estrago que poderia ser causado pelo texto aprovado pelos deputados era muito grande. Ele, na prática, retirava a proteção das áreas mais importantes e bem preservadas do que restou da Mata Atlântica, que são aquelas florestas que nunca foram desmatadas (primárias) ou que já estão em recuperação há muitas décadas (secundárias em estágio avançado de regeneração). Os jabutis, incluídos pelos deputados numa medida provisória que tratava de outro assunto, autorizavam que rodovias, ferrovias, linhas de transmissão, minerodutos e outras grandes obras pudessem cortar florestas primárias sem que seus proponentes se dessem o trabalho de avaliar se seria possível construí-las em outro lugar. Além disso, uma vez realizado o desmatamento, não haveria mais necessidade de compensação ambiental. Segundo Nota Técnica entregue pelo WWF -Brasil ao relator da matéria no Senado Federal, Senador Efraim Filho (União/PB), essa alteração ameaçava 80% dos remanescentes de florestas primárias, colocando em risco um grande número de espécies da fauna e flora ameaçadas de extinção que sobrevivem justamente nesses locais, que já são poucos. Por ser o bioma mais degradado, a Mata Atlântica abriga 60% de todas as espécies criticamente ameaçadas de extinção no país. Os aprimoramentos feitos pelo relator do Senado Federal foram todos revertidos pelos deputados.
Esse era apenas um dos diversos dispositivos que tentavam esfacelar a legislação ambiental brasileira e que o Presidente Lula vetou. Havia outro que permitia que os municípios, por lei municipal, permitissem que beiras de rios pudessem ser ocupados por construções, como casas ou indústrias. Num contexto de mudanças climáticas, no qual as enchentes são cada vez mais frequentes, essa regra aprovada pelos deputados iria jogar milhões de cidadãos, nas próximas décadas, para áreas de risco. Como ressaltado na nota técnica do WWF- Brasil, essas mudanças iam em sentido diametralmente contrário ao recomendado pelos cientistas do IPCC (Painel Intergovernamental para Mudanças do Clima da ONU), cujo último relatório orienta as cidades brasileiras a adotar soluções baseadas na natureza, como a criação de áreas verdes, a restauração de ecossistemas e a conservação de áreas naturais, como são as matas ciliares situadas em área urbana.
Além de vetar todos os jabutis, pontos que não tinham a ver com o tema da MP, que era extensão de prazo para adesão aos Programas de Regularização Ambiental – PRA, o Presidente Lula também vetou um dispositivo que podia limitar o poder de bancos públicos e privados restringirem crédito a produtores rurais que continuam desmatando ilegalmente. Pelo texto aprovado pela Câmara dos Deputados, os produtores rurais “não poderiam ter o financiamento de sua atividade negado em face do descumprimento desta lei”, ou seja, do Código Florestal. Essa era uma tentativa da ala mais conservadora da bancada ruralista de frear iniciativas de instituições financeiras que buscam evitar empréstimos a quem desmata ilegalmente, como a anunciada semana passada pela Federação Brasileira de Bancos.
Nem tudo, no entanto, pôde ser consertado pelos vetos. O texto aprovado torna ainda mais difícil o país avançar na regularização ambiental de imóveis rurais no país, jogando para um futuro incerto a restauração de 19 milhões de hectares de APP (área de preservação permanente) e RL (reserva legal) desmatados ilegalmente antes de 2008. Isso porque o texto que foi sancionado condiciona o início da restauração de passivos ambientais à prévia validação individual de cada um dos mais de 6 milhões de registros de imóveis rurais no CAR (Cadastro Ambiental Rural).
Passados 11 anos da promulgação do novo Código Florestal apenas 0,6% dos imóveis registrados tiveram suas informações validadas. O texto aprovado cria dificuldades para que o Estado possa fazer processos de regularização coletivos, mas talvez a regulamentação possa superar parte dessas dificuldades. O ponto central, aqui, no entanto, é que os governos estaduais não conseguiram avançar em sua obrigação, que era fazer as análises dos cadastros – e sem isso pouco há o que ser fazer em termos legislativos para resolver.
A primeira semana de meio ambiente após a tragédia do governo Bolsonaro mostrou que a caneta que promove destruição também pode ser usada para evitá-la, dependendo de quem a usa.