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“CHEQUE EM BRANCO” INVIABILIZA FISCALIZAÇÃO DE GASTOS DE SENADORES COM COMBUSTÍVEIS

Imagine chegar ao posto de gasolina e encher, de uma vez, o tanque de um automóvel com 3.260 litros de combustível ao custo de R$ 15 mil ou pedir para o frentista para abastecer o seu carro 52 vezes seguidas em um intervalo de segundos. Tudo isso pago com dinheiro público. Casos como esses foram levantados pela Operação Política Supervisionada (OPS), que jogou uma lupa sobre o gasto dos senadores com combustíveis.

A força-tarefa foi batizada por seus participantes como Operação Tanque Furado. O resultado foi compilado em relatório ao qual o Congresso em Foco teve acesso com exclusividade. Foram analisadas 203 notas fiscais de valor igual ou superior a R$ 500 entregues pelos parlamentares em 2019 e 2020 ao Serviço de Gestão da Ceaps, departamento do Senado responsável por autorizar o reembolso da Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar dos Senadores (Ceaps).

O trabalho é feito por voluntários de várias unidades da federação, sob a coordenação do instituto, e com o apoio do RobOps, recurso tecnológico de raspagem de dados públicos. Nos dois anos analisados, os senadores brasileiros gastaram um total de R$ 2,7 milhões com combustíveis. O valor dos reembolsos não inclui gastos com combustível de aviação. Mesmo assim, a despesa total chega a R$ 3,5 milhões se contabilizados os registros de janeiro a setembro deste ano.

Por mês, cada senador tem direito a uma cota que varia de R$ 21 mil a R$ 44,2 mil, dependendo do estado. Elas existem para cobrir despesas do parlamentar com o exercício do mandato. Entre os itens cobertos pela verba indenizatória, estão hospedagem, alimentação e gastos com deslocamento, incluindo os combustíveis. As notas fiscais podem estar registradas no nome do senador ou senadora ou ainda no de servidores da Casa. Feito o pedido de reembolso, o Senado tem até cinco dias úteis para devolver o dinheiro com combustíveis.

Câmara e Senado têm regras distintas para essa prestação de contas. Porém, ambas as Casas mantêm normas que, conforme indicou o relatório do Instituto OPS, são frágeis e permitem gastos exorbitantes, deixando espaços quanto ao cumprimento ideal das Leis de Transparência e de Acesso à Informação. Leis estas fundamentais para o exercício da fiscalização pública especialmente pela sociedade.

No caso do Senado, por exemplo, os senadores são os fiscais dos próprios gastos. Pelas brechas desse sistema, no entanto, podem escoar milhões de reais em dinheiro público todos os anos, observa o diretor-presidente do Instituto OPS, Lúcio Big.

“EU NÃO DIRIA QUE SEJA APENAS FRAGILIDADE, MAS UM VERDADEIRO DESCASO COM O DINHEIRO DO CONTRIBUINTE. NÃO É POSSÍVEL ACEITAR QUE MILHÕES DE REAIS POR ANO SEJAM GASTOS SEM QUALQUER CONTROLE, OU COM CONTROLE MÍNIMO. ESSA PRÁTICA APENAS AUMENTA O NÚMERO DE IRREGULARIDADES QUE SÃO ENCONTRADAS, LAMENTAVELMENTE, COM CERTA FACILIDADE”, DISSE.

Ele explica que, desde 2014, vigora o ato do Primeiro-Secretário n. 5, da Mesa Diretora do Senado, segundo o qual a Casa só verifica se a despesa a ser reembolsada ao parlamentar se enquadra entre as previstas. Não é feita qualquer checagem de veracidade ou licitude dos comprovantes, cabendo apenas ao parlamentar se responsabilizar pelos documentos apresentados.

A partir da observância dessas brechas em relação às Leis da Transparência, de Acesso à Informação a Operação Tanque Furado começou a montar o quebra-cabeça dos possíveis ralos por onde escoam milhões de recursos públicos.

A operação identificou brechas nas prestações de contas dos seguintes senadores:

“Dentre as estranhezas encontradas, parte considerável dessas notas fiscais eletrônicas ao consumidor (NFC-e) não possui a identificação do consumidor ou foi emitida em nome de consumidores que não fazem parte do gabinete parlamentar, ou ainda, emitida em nome de empresas”, destaca o relatório da operação. 

Tanques “extra-grandes” 

Dos casos que chamam atenção está o de uma nota fiscal para o abastecimento de 3.260 litros de diesel S10. O documento foi apresentado pelo gabinete do senador Márcio Bittar. A nota não possui documentos referenciados (NFC-e), o que sugere um abastecimento único, ou seja, não detalha se houve mais de um abastecimento nem quantos foram e em que ocasiões. No total, R$ 15 mil reembolsados. 

Esta, porém, não é a única nota vinda do gabinete de Bittar que consta da Operação Tanque Furado. Há uma nota protocolada em 12 de agosto de 2019, na qual o senador alega ter abastecido com 1.525 litros de diesel S10 ao custo de R$ 6.999,75. O senador também recebeu o reembolso desse montante.

Há uma série de notas sem qualquer identificação do consumidor vinculadas ao gabinete de Bittar. Pelas regras do Senado, o abastecimento deve ser voltado apenas ao exercício do mandato pelo parlamentar ou por seus assessores e a ausência de identificação destoa do que determinam as leis de Transparência Pública e de Acesso à Informação.

Outro parlamentar que segue a linha dos gastos com tanques vultosos é o senador Chico Rodrigues. Várias das notas entregues por Rodrigues para pedido de ressarcimento no período de análise tinham valor superior a R$ 1.500 e, geralmente, com registro de 200, 300 e até 400 litros colocados.

Os compartimentos das SUVs e das pickups, modelos de carro preferidos entre os políticos, existentes no mercado brasileiro, não chegam a comportar 100 litros de combustível. Apenas ônibus e caminhão ultrapassam essa margem.

Também foi encontrada uma série de notas fiscais de abastecimentos de quase 200 litros entre os pedidos de ressarcimento do gabinete da senadora Mara Gabrilli. O carro dela é um Jac T8 com capacidade para 80 litros de gasolina.

Em nenhuma das notas apresentadas pela senadora Mara Gabrilli consta a inserção de documentos referenciados (NFC-e), apesar da legislação tributária de São Paulo determinar que, em casos de emissão de NF-e referente a vários abastecimentos, a informação deva estar presente.

A falta dos documentos referenciados é vista em notas apresentadas por vários outros senadores listados. Essa ausência é um empecilho à transparência, pois torna impossível saber como se deram as aquisições de combustíveis.

Ressarcimento por mililitros 

Se por um lado os abastecimentos com grandes volumes chamam atenção, as baixas quantidades de combustível pagas em uma “mesma ida ao posto” também são curiosas. Notas apresentadas pelo senador Elmano Férrer, por exemplo, indicam vários abastecimentos com pequena litragem em um mesmo dia e local. É como se tivesse sido abastecida uma fila de veículos de pequeno porte, como bicicletas motorizadas.

Outro caso é o da senadora Eliziane Gama. A parlamentar entregou, em outubro de 2020, uma nota com 100 NFC-e. A maior quantidade de combustível por abastecimento foi 1,4 litro e a menor, 110 mililitros. Foram vários abastecimentos que, juntos, resultam mais de R$ 4 mil para pedido de ressarcimento. 

A auditoria ainda encontrou registros de diversos abastecimentos em um só dia, valores que sugerem o abastecimentos de veículos de carga, em favor de empresas ou de pessoas que não compõem o quadro de assessores do Senado, ou mesmo em nome de ninguém. 

“Vislumbra-se uma prática desconectada com a norma, envolvendo parlamentares da atual legislatura, o que pode ter gerado prejuízos quase incalculáveis ao erário, vez que nem todas as NF-e deste período foram auditadas pelo Instituto OPS, e ainda, pelo fato de os ressarcimentos acontecerem desde 2009, pelo menos”, afirma o instituto. 

O levantamento também localizou vários abastecimentos com combustíveis inseridos em uma mesma nota em documentos apresentados pelo gabinete do senador Humberto Costa. Ele conseguiu, de acordo com nota fiscal analisada pelo OPS, encher o tanque 52 vezes em uma mesma ida ao posto.

Os abastecimentos foram com gás natural e ocorreram em outubro de 2018, mas tiveram lançamento no sistema do legislativo federal apenas em janeiro de 2020, o que, indica o relatório do OPS, é irregular perante a legislação tributária, dado o lapso temporal, e ainda perante o Senado, pois o prazo limite seria o final de março do ano seguinte, isto é, 2019. A NFC-e em questão não possui identificação do responsável pelo abastecimento.

Seguindo a linha do seu colega Humberto, o senador Sérgio Petecão também abasteceu 50 vezes em um só momento. A conta ficou em R$ 1.513,60.  À época, o valor resultou no abastecimento de 344 litros de combustível.

Outros parlamentares repetiram o expediente, como a senadora Mailza Gomes, que conseguiu reunir vários abastecimentos seguidos em diversas notas de valores acima dos R$ 2 mil.

Dúvidas

A verba indenizatória para gastos com combustíveis se destina ao ressarcimento de despesas realizadas pelo senador ou por seus funcionários de gabinete no exercício de atividades relacionadas ao mandato. Entretanto, o que se verificou na análise foi um conjunto de notas fiscais que deixam dúvidas sobre se tal regra tem sido cumprida a contento.

O gabinete do senador Sérgio Petecão figura como um dos casos que chama a atenção ao ter sido ressarcido mediante apresentação de notas fiscais em nome do dono do próprio posto, onde foi realizado o abastecimento do tanque. Documentalmente, é como se o próprio dono tivesse realizado o abastecimento para si. 

Já o gabinete da senadora Eliziane Gama protocolou diversas notas em nome de empresas, o que igualmente contraria as normas do Senado. Na lista estão empresas de locação de veículos, mas também outras cujo CPJ pertence a grupos de cargas e transporte e até mesmo uma construtora. De maneira semelhante, a emissão de notas em favor de pessoas jurídicas foi verificada em documentos entregues  pelo gabinete do senador Jarbas Vasconcellos.

Por outro lado, a falta de identificação do consumidor, isto é, da pessoa que abasteceu o veículo também é comum entre as notas analisadas, tanto as apresentadas por Eliziane Gama, quanto por outros parlamentares, como o senador Cid Gomes e Jarbas Vasconcellos e Mailza Gomes. Essa falha torna impossível assegurar que o ressarcimento é para um gasto realizado, de fato, pelo parlamentar ou por algum de seus funcionários.

Combustíveis S500 

Se nas notas apresentadas falta a identificação exata do veículo que foi abastecido, incluindo modelo e placa, os tipos de combustíveis usados dão pistas. 

Por exemplo, nos documentos usados pelo senador Chico Rodrigues constam gastos com óleo diesel S500, que é utilizado somente para veículos utilitários fabricados antes de 2012 e, em grande escala, incluindo caminhões, ônibus e máquinas agrícolas. Em 2020 o parlamentar possuía uma pick-up S10, ano 2019, portanto abastecida com combustível diesel S10.

Os abastecimentos com diesel S500 também são recorrentes nos documentos fiscais usados por outros senadores para pedir ressarcimento, como é o caso de Cid Gomes.

Apesar de tecnicamente ser compatível com veículos mais novos, o uso de diesel S500 em carros fabricados após 2013 é proibido por lei. Trata-se de crime ambiental, enquadrado no artigo 54 da Lei 9.605/98 e a pena varia de um a quatro anos de reclusão.  

FONTE :CONGRESSO EM FOCO (POR ANA KRÜGER  E JÚLIA SCHIAFFARINO)

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