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NÚCLEO DE ALFABETIZAÇÃO HUMANIZADORA

Amanheceu na Ilha do Juçara! O temporal da noite tinha alagado as canoas, retorcido os galhos dos pés de cacau, arrancado as bananeiras. Era hora de arrumar o que resistira ao temporal. Uma novilha que se perdera foi encontrada assustada, com arranhões pelo corpo, feitos por galhos, que voaram à noite, ou por uma onça pintada, que espreitava o pequeno rebanho. Ou… Os mais antigos logo profetizaram:

– Foi um aviso das Matintas! A rainha delas está zangada com a gente!! – murmuravam os mais velhos. As árvores mais antigas foram derrubadas!! No chão agora só tem capim! É a sua zanga!

Naquele entardecer, quando a noite se avizinhava, as pessoas, as mais velhas, as mais novas e as crianças, se refugiaram em suas casas, preocupadas com o próximo aviso da Matinta.

Aninha não! Fez como sempre! Saiu pelas ruas, brincando com uma amiga imaginária, saltando daqui pra ali, dali pra aqui. Já passava de três da tarde, quando ela viu o menino caminhando desengonçado pela rua de sua casa. Estava sujo de lama, com arranhões pelo corpo, como se tivesse travado, à noite, uma luta com uma onça. Ou…

Ele não falava. Sua boca, um pouco torcida para a esquerda, se aproximava do olho sempre arregalado. As pernas cruzadas, joelhos e pés desalinhados, suportavam seu corpo magro. Andava aos tropeços, braços com movimentos limitados, a pedir um pedaço de peixe, uma castanha, uma cuia de farinha, um pedaço de bolo de macaxeira, um doce de cupuaçu, um gole de vinho de açaí, um pedaço de pão. À noite, diziam, se encantava. Virava Matinta, um encantado.

Aninha sempre costumava estender a mão para dividir com ele a merenda, o pedaço de bolo, o doce de cupuaçu e os sorrisos, saltitando, com seus 8 anos, pelos caminhos barrentos da ilha do Juçara, lambida pelo Solimões. Ele não falava com a boca. Só com os olhos. Eles refletiam agradecimento a cada gesto da menina.

Preocupada, se perguntava onde teria ele passado a noite. Como se abrigara do mau tempo? Por que preferira a mata a um abrigo seguro, mesmo que fosse debaixo do assoalho de alguma casa da ilha? Ninguém perceberia sua presença e ficaria lá bem escondido!

Aninha se aproximou dele, sem receio. Quando partilhava seu pedaço de bolo de macaxeira, ouviu a voz distante da mãe gritar seu nome. O sol morria quente por trás da floresta, enquanto esparramava, em seu estertor, os últimos raios pelas águas barrentas do rio e das lagoas. A menina deu meia volta e disparou em direção à voz da mãe, que já a esperava ao pé da escadinha da porta da casa de madeira. A morada se equilibrava sobre tocos protetores em tempos de cheia contra as águas indomáveis do rio.

– Aninha! Cadê tu, menina!?

Antes que a mãe a procurasse, gritou de longe um já vou meio ofegante.

– Já tá escurecendo, é noite de lua cheia, já pra casa, menina! Onde se já viu, uma hora dessas ainda brincando por aí com as outras meninas! Onde estão essas mães que não chamam as filhas!?

Aninha, quieta, correu pelo caminho barrento em direção ao banheiro, nos fundos do quintal, com a água da cacimba na lata já preparada para o banho. A voz da mãe ecoava atrás dela.

– É lua cheia! Já teve tempestade! É noite de Matinta! Não é hora de ficar fora de casa, Aninha!

Ela já tinha ouvido histórias da mãe, das tias, das vizinhas, de todas as mulheres, de todos os homens, de todas as crianças, que o menino de pés desalinhados, em noite de lua cheia, virava Matinta. Era a sua maldição por ter sido gerado por relações proibidas, pela crença do povo. Diziam todos, à boca solta, que filhos de relações proibidas, todos eles, se transformavam, à noite de lua cheia, em Matinta. Nas noites de lua brilhante, na escuridão entre as árvores, nas trilhas da ilha, diziam, uma figura estranha galopava sem parar, como cavalo perdido. De imagem fugidia, corria disparado, com folhas de bacabeira na cintura e rapidez nas pernas.

Enquanto se banhava, Aninha pensava no menino que à noite se tornava Matinta. Um medo esfriou sua barriga. Banhou-se, enxugou-se, enfiou os dedos na alça do chinelo e foi se sentar na escadinha na frente da casa, à espera do chamado Vem jantar, Aninha! gritado pela mãe. Sentia pena do menino! Do Matinta, do encantado, sentia medo!

Ouviu o frigir do óleo da frigideira fritando o jaraqui. Sentiu o aroma do tempero da mãe. As sombras da noite chegaram. Com ela veio o piado sem graça, agourento, do urutau, a mãe-da-lua, ave-fantasma da Amazônia! Lembrou-se do menino que não tinha mãe, nem jaraqui.

Lembrou-se, repentinamente da sua boneca, a Juçarinha, feita com palha de buriti recheada com flocos de paina e olhos de frutos de açaí. Onde estaria? Procurou na sala, no quarto, dentro da trouxa de roupas, embaixo da mesa da cozinha. Onde estaria? Num lampejo, lembrou-se que tinha brincado com ela na sombra da paineira do outro lado do quintal. Mas estava escuro agora! Se pedisse para a mãe, ela não a deixaria sair. Olhou para as mãos na frigideira, para os pedaços de jaraqui rolando para cá e para lá no óleo quente.

Decidiu correr até o fim do terreno, pegar a boneca e trazer para dentro. Era noite de lua cheia! Havia luz entre as árvores! Juçarinha não podia dormir lá fora, ao relento! E se Matinta a pegasse?!

Saiu de mansinho, sem bater chinelo, desceu a escada da frente, deu volta pela casa, desapareceu das vistas da mãe. Em cinco pulinhos estava já aos pés da paineira e de suas coisinhas de brincar de casinha. Juçarinha não estava encostada no tronco. Abaixou-se, olhou bem para o chão, deu a volta em torno para ver o outro lado. Ouviu, então, o sussurro de um vento rápido.

Viu grandes pés de um vulto alto, impreciso, enfumaçado, com folha de bacabeira na cintura. Nas mãos dele, enormes, Juçarinha repousava suavemente. Aninha arregalou os olhos! As pernas bambearam! Virou-se imediatamente para correr, mas ouviu um sussurro suave, ininteligível, que a fez ficar imobilizada!

Ficou imóvel, olhar fixo nos olhos redondos, enfumaçados. Gentilmente, ele esticou os braços longos, muito longos, envoltos em neblina. Depositou a boneca nas mãos dela. Delicadamente, ela a levou junto ao peito e a abraçou com ternura. Os olhos dela e os do vulto se cruzaram, ternamente. Num instante, uma neblina fina, brilhante pelo fosforescer da luz da lua cheia, envolveu-o. Aninha viu-o desaparecer como se fosse uma nuvem desfeita pelo vento, levando, com ele, o seu brilho efêmero.

Voltou pelo mesmo caminho, disparou em direção à frente da casa. Ofegante, com Juçarinha junto ao peito, sentou-se na escadinha. Mal tinha se sentado, ouviu a voz da mãe: “Aninha, vem jantar, menina! Já te chamei duas vezes. Tá surda?”

Respirou fundo, levantou-se, caminhou batendo o chinelo no calcanhar e sentou-se na cadeira, diante do prato feito, caladinha. A mãe estranhou: “Nunca te vi tão quieta pra comer peixe frito! E tem outra! Acabou de comer, já pro quarto pra atar a rede, porque amanhã cedo tem de pegar o barco pra ir pra escola! Na madrugada ainda tem lua cheia. Tem Matinta por aí! Só pode sair com o claro do dia!”

Aninha não levantou os olhos para a mãe. Comeu quieta, mas com o coração disparado! Olhou para os olhos roxos de Juçarinha feitos de frutos de açaí. Guardavam, as duas, um segredo!!

Foi logo pra rede, como mandou a mãe. Uma imagem enfumaçada e um sussurro suave acompanharam seu sono tranquilo naquela noite. Adormeceu abraçada à boneca.

Nunca mais sentiu medo de Matintas!!

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