No quintal do Rafael ‘Rato’
por Ramon Barbosa Franco
Quando li o conto ‘A visita de João Gilberto aos Novos Baianos’, do escritor Sérgio Rodrigues – uma das minhas referências literárias da contemporaneidade – não estava lá num período muito ‘bão’ da vida. Tinha passado por um turbilhão de problemas particulares e pessoais, que me faziam sentir-se preso ao centro de um furacão. Como jamais presenciei um furação, então eu me via preso num daqueles redemoinhos de vento, folha seca e muita poeira em que na infância eu acreditava estar trazendo o Saci-pererê, lá do Sítio do Pica-pau Amarelo.
Isso foi lá pelos anos de 2019, antes da pandemia que viria a mudar hábitos e levar pessoas, nos deixando vários vazios e muita saudade. Li aquela trama meio fictícia, meio verdade do Sérgio Rodrigues e, assim como todo mundo que teve acesso a este conto – que está no livro de mesmo nome lançado pela Companhia das Letras – ficava encafifado: ‘Será que isso é verdade ou licença poética? Parece tão convincente’. Questionava, mas deixava a minha imaginação fluir, percorrer aquele dia antológico totalmente recriado pelo Sérgio Rodrigues. E, sim, o autor utilizou da licença poética para criar um dos mais domésticos e célebres momentos mitológicos da MPB: o dia em que João Gilberto, com seu violão, baixou onde Alceu Valença, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor, Luiz Galvão e Baby Consuelo viviam, no ‘Cantinho do Vovô’, o sítio em Vargem Grande, bairro onde o Rio faz divisa com Jacarepaguá.
Para fugir da tensão e dos conflitos daqueles dias de 2019, recordava da narrativa, do encontro entre tanta gente talentosa da nossa música – e como escreveu certa vez Eça de Queirós, ‘a canção é uma língua sempre clara e fácil para mover as classes populares’. Aquela conexão entre a excelência musical, a natureza contida naquele sítio e a efervescência cultural que o conto de Sérgio me proporcionou, me encapsulava de arte e me imunizava dos meus problemas – que eram tensos e intensos. Por fim, acabou o ‘chorare’ e a vida, como está no poema de José Fortuna, ‘Riozinho’, fluiu feito a água do rio. Pendengas resolvidas e a arte se fez.
E, de quando em quando, eu me pegava querendo presenciar algo perto daquilo, o encontro de música, natureza e cultura. Eis que sou apresentado a uma pessoa genial, de elevada sensibilidade artística e conectividade com valores da cultura brasileira: o Rafael ‘Rato’. O Rafa desenvolve um trabalho voluntário de discotecagem com as pessoas da terceira idade em Marília, levando LPs com sucessos de outras épocas. Não demorou muito, o Rafa me convidou para uma das edições do ‘Quintal do Rato’, onde ele reúne alguns músicos, como Lúcio Prado e a Camila Vidigal, e convidados para homenagear um compositor ou uma compositora. O último que participei foi o animado tributo ao saudoso Tim Maia (só faltou a gente cantar ‘Canário do reino’, que pena, mas cantamos ‘A festa do Santos Reis’ e ‘Coroné Antonio Bento’), mas amei estar no tributo ao Belchior e poder interpretar duas das músicas mais emblemáticas dele: ‘Tudo outra vez’ e ‘Galos, noites e quintais’. Perdi a homenagem ao Raul Seixas e aos velhos carnavais, porém estou ansioso para o próximo, que será totalmente dedicado ao movimento Tropicália.
Quando João Gilberto esteve com os Novos Baianos na zona rural do Rio de Janeiro eu nem era nascido, porém, intuo, que o clima – e isso inclui a amizade e a atmosfera – e o som passa pelo que vivo no quintal do Rato. O quintal não é o ‘Cantinho do Vovô’, contudo, pelo menos para mim, está se tornando uma referência de música, de arte e de fraternidade. Valeu Rafa, gratidão por compartilhar o seu quintal e sua mensagem!
Ramon Barbosa Franco é escritor e jornalista, autor dos livros ‘Canavial, os vivos e os mortos’, ‘A próxima Colombina’, ‘Contos do Japim’, ‘Vargas, um legado político’, ‘Laurinda Frade, receitas da Vida’, ‘Quatro patas, a história de Pituco’, ‘Nhô Pai, poeta de Beijinho Doce’, ‘Dias de pães ázimos’ e das HQs ‘Radius’, ‘Os canônicos’ e ‘Onde nasce a luz’, ramonimprensa@gmail.com