Discussão sobre canção de Chico Buarque fica pobre se ignora espaço e função do eu lírico em letras de música
Em mais um exemplo do poder mobilizador e doutrinador dos algoritmos no mundo informatizado, um factoide sobre Chico Buarque se tornou viral, provocou polêmica nas redes sociais e, por conta da treta, ganhou manchetes na mídia sem que houvesse de fato uma notícia a ser discutida.
Na terça-feira, 25 de janeiro, começou a circular a informação de que o compositor carioca decidira parar de cantar Com açúcar, com afeto (1967), música que, aliás, Chico já não cantava em shows desde 1975.
A rigor, o artista jamais tomou qualquer decisão recente em relação à doce canção que compusera em 1967 para Nara Leão (1942 – 1989), a pedido dessa cantora determinante para a popularização da obra do compositor na segunda metade da década de 1960.
Na realidade, a notícia foi forjada há três dias a partir da extração de trecho de depoimento concedido por Chico há algum tempo para o documentário O canto livre de Nara Leão, blockbuster da plataforma Globoplay neste mês de janeiro.
No documentário, Chico explica – no contexto de depoimento sobre a relação profissional do artista com Nara Leão – que parou de cantar Com açúcar, com afeto por aceitar o argumento de feministas que detectam caráter machista na letra que retrata mulher dócil e submissa aos caprichos do marido boêmio e infiel.
É evidente que Chico Buarque e qualquer cantor têm todo o direito de não mais cantar qualquer música que julguem inapropriada. A questão é que, nas discussões geralmente binárias das redes sociais, esquece-se que, na canção, existe um eu lírico que difere da voz do autor.
Um compositor pode retratar numa letra de música o machismo ainda reinante em muitas relações conjugais sem que seja necessariamente a favor desse comportamento machista. Até porque a exposição do absurdo em versos e música pode ser forma de fazer refletir sobre pontos dissonantes da sociedade.
Uma canção, em essência, é obra de arte. E, como arte, a canção se desenvolve em narrativa ficcional, conduzida pela eu lírico na primeira ou na terceira pessoa. O próprio Chico Buarque sempre foi mestre na feitura de letras escritas sob ótica feminina, todas abraçadas pelas maiores cantoras do Brasil por se tratar de canções de um dos maiores compositores do mundo em todos os tempos.
É salutar que mulheres estejam com voz cada vez mais ativa no ofício da composição, em processo que veio evoluindo nos últimos 40 anos. A revolução feminina que sacudiu a MPB em 1979 – dando projeção a Angela Ro Ro, Fátima Guedes, Joyce Moreno (pioneira na escrita de letras explicitamente femininas) e Marina Lima, entre outras cantoras que se impuseram como compositoras – foi fundamental para que as mulheres passassem a falar sobre elas mesmas na música brasileira.
Nem por isso, alguém com o mínimo de lucidez negaria o valor de um bolero do quilate de Anos dourados (Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque, 1986) somente porque um homem assina a letra escrita sob ótica feminina.
Mas parece que falta lucidez quando discussões surgidas nas redes sociais, como as decorrentes da atual treta sobre a canção Com açúcar, com afeto, apontam para a dificuldade de entendimento de que, numa canção, a interpretação da realidade não significa necessariamente que o autor legitime essa realidade.
Uma das muitas obras-primas do cancioneiro de Chico Buarque, Geni e o Zepelim (1978) expõe na letra a hipocrisia e a falsa moral que regem a sociedade capitalista. E, quando Chico ou cantoras como Cida Moreira dão vozes a essa música, ninguém em sã consciência pensaria que compositor e intérprete defendem a ideia de que se joguem bosta nas Genis da vida real.
Sem esse entendimento do espaço e da função do eu lírico na Arte, a sociedade empobrece intelectualmente e se torna refém do algoritmo, tornando inócua qualquer discussão sobre música, teatro, poesia, cinema, novela e literatura.
FONTE: G1 (POR MAURO FERREIRA)