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Aquele trabalho que reativa o brilho nos olhos

Voltar para a Amazônia e testemunhar seu esplendor renova nossas forças para lutar contra a destruição e a violência que consome a nós e à floresta

Retornei recentemente de uma viagem de 21 dias vividos intensamente na Amazônia que, apesar do Brasil e dos seus acontecimentos recentes, conseguiu trazer de volta um brilho no olhar que estava um pouco apagado. 

Apagado porque nossos trabalhos tem mostrado majoritariamente a parte triste da Amazônia, como por exemplo quando realizamos em setembro do ano passado uma expedição no sul do Amazonas e norte de Rondônia para documentar os impactos das queimadas e incêndios na vida das pessoas e no ambiente, ou quando estive no Pantanal em 2020, ocasião em que mais de um quarto do bioma foi queimado em um intervalo de meses, MESES. 

No dia a dia temos assistido ao desmonte da gestão ambiental brasileira com decretos e decisões aqui e ali e nos dedicado a barrar uma agenda de retrocessos em curso no Congresso Nacional. Foram muitas as mobilizações que fizemos no Twitter, por exemplo, contra os PLs da Grilagem (PL2633 e PL 510), que visam legalizar a invasão de terras públicas. Nessa batalha saímos parcialmente vitoriosos, pois até agora conseguimos evitar que muitas dessas propostas fossem aprovadas. Ainda assim, existem aqueles momentos de total impotência, como quando colegas e defensores são assassinados. E apesar de tudo isso,  cabe a nós seguir lutando ainda mais para que esse cenário mude, e que mude logo. 

Há dois anos vínhamos tentando realizar a expedição Amazônia que Precisamos, que por causa da pandemia foi sendo adiada. Neste ano tão importante e decisivo para o Brasil e para a Amazônia, nos colocamos o desafio de contar um pouco sobre essa Amazônia que devemos construir, fortalecendo a esperança que ainda reside em nós

No caminho de Manaus até o local da expedição, no rio Manicoré, vimos muitos contrastes. Desde a exuberância e força do rio Madeira, até um número absurdo de dragas de garimpo. Foi nesse caminho que tomamos conhecimento de que Bruno e Dom tinham desaparecido, e isso trouxe mais alguns contrastes, dessa vez entre o sentimento de tristeza e revolta, com a certeza de que precisamos nos manter fortes na luta para reverter esse cenário de destruição e ameaças que se consolidou na Amazônia.  

O objetivo da expedição foi apoiar a luta das comunidades do rio Manicoré, que demandam há 16 anos a proteção da floresta e reconhecimento de seus direitos ao território, além de prover uma plataforma para pesquisar a biodiversidade da região, ainda pouco estudada. Pensem que, em virtude do desmatamento, estamos perdendo espécies que a ciência sequer teve tempo de conhecer, então nossa contribuição foi nesse sentido, além de em anos anteriores termos apoiado com bolsas de estudo pesquisadores de mestrado e doutorado que estudam a biodiversidade. 

Recentemente a CAARIM, em parceria com o Greenpeace, promoveu a sinalização do território de uso comum do Rio Manicoré – uma das ações previstas para a implementação do documento de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). (© Nilmar Lage/Greenpeace)

Nossa casa durante quase um mês foi um barco regional que abrigava aproximadamente 60 pessoas a bordo, foram cerca de 15 pesquisadores ligados ao INPA e instituições parceiras, equipe do Greenpeace e membros das comunidades do rio Manicoré. Ao longo da expedição recebemos jornalistas e um ator alemão que se apaixonou pela Amazônia. 

O cenário era sempre muito fascinante, ficamos em uma parte bem remota da Amazônia, talvez a parte mais remota que eu já pisei. Estávamos há cerca de cinco horas da sede do município de Manicoré, subindo o rio. Lá foram abertas cinco trilhas para facilitar o trabalho de amostragem dos pesquisadores que estudavam aves, mamíferos, botânica, peixes, répteis e anfíbios. Tivemos também a participação de uma paleontóloga que buscava fósseis de animais já extintos que viviam naquela região. Os comunitários a bordo participaram de algumas atividades dos cientistas e foi estabelecida uma troca fantástica entre conhecimento acadêmico e tradicional. Estava em meio a uma profunda troca de saberes. 

Além disso, tivemos a oportunidade de conversar muito com as lideranças locais e visitar algumas comunidades. Passamos em algumas comunidades e aprendemos sobre o modo de vida tradicional, que tem uma relação totalmente diferente com a natureza, muito mais equilibrada e saudável. E melhor, ainda traz renda para essas populações. Acompanhamos o processo de extração do óleo de andiroba, do açaí, produção de cacau e de mandioca. Vimos na prática sistemas agroflorestais em pleno funcionamento. Estes já são conhecidos e reconhecidos academicamente por aumentar a produtividade e trazer benefícios ambientais. 

A Amazônia que precisamos já tem seus exemplos, mas precisa ainda de muita vontade política, e políticas públicas para, de fato, ser consolidada . 

Foi especialmente estimulante ver a paixão com que ambos os grupos fazem sua luta e seu trabalho. De um lado, cientistas animadíssimos e apaixonados pelo seu trabalho apesar de não receber quase nenhum financiamento ou incentivo para pesquisa científica no país de Bolsonaro que também desmontou a ciência, é uma resistência e tanto. Do outro lado, as comunidades do rio Manicoré, que têm assistido de perto às ameaças ao território e enfrentado a lentidão do poder público e interesses contrários à proteção daquele local, 16 anos de luta é bastante coisa.  

E para mim, o mais inspirador foi que à frente desse movimento estão as lideranças femininas. Em um almoço enquanto conversava com Dona Cléia, diretora da Central de Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (CAARIM), ela lembrava seus anos de luta para a criação de uma reserva de desenvolvimento sustentável, me contava com orgulho da conquista recente, de março deste ano, quando o governo do estado do Amazonas reconheceu como território de uso comum a mesma área pleiteada como Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS). 

O documento entregue à CAMARIM é uma  Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), um reconhecimento dos direitos territoriais e certamente um passo fundamental para evitar que novas invasões ocorram, mas ainda tem muito trabalho pela frente. 

Durante a expedição, inclusive, auxiliamos na instalação de algumas placas para identificar a área abrangida pela CDRU. Outro ponto importante é que os estudos da biodiversidade, além de fornecer um inventário rápido do que existe naquela região, e potencialmente levar à documentação de novas espécies, também ajudará no plano de gestão da área e reforçará a proposta de criação de uma RDS. 

Mas nem tudo são flores, apesar da conquista recente, não quer dizer que a área, sua biodiversidade e as comunidades não enfrentam riscos. Isso porque estamos falando do sul do Amazonas, uma região onde o desmatamento tem avançado com voracidade, as terras públicas da região estão sendo invadidas, griladas e desmatadas, e pior, governos locais estão incentivando o avanço da agropecuária através de um projeto de “desenvolvimento regional” chamado até ano passado de Amacro (que compreende municípios do sul do Amazonas, norte de Rondônia e leste do Acre) e rebatizado de “Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira, que de sustentável tem só o nome.

A floresta, seus povos e o clima tem pressa. Por isso seguiremos nessa luta para deixar para trás uma Amazônia marcada por grilagem, desmatamento, violência contra defensores das florestas e construir e fortalecer uma Amazônia sem desmatamento, com direitos garantidos, que respeita modos tradicionais de vida e que oferece reais oportunidades de desenvolvimento e bem estar para as populações que vivem na Amazônia. . 

Ao invés da economia da destruição que impera na região e se alimenta de floresta, precisamos fazer uma transição para uma economia que conviva com a floresta e respeite seus povos. 

Por Bruno, por Dom, que tive a honra de conhecer e trabalhar junto, e por muitos outros que se foram tentando fazer da Amazônia e do mundo um lugar melhor, pelas comunidades do rio Manicoré e pelos povos da floresta, pela nossa biodiversidade, seguirei e seguiremos firme nessa luta.

FONTE : GREENPEACE BRASIL ( POR Cristiane Mazzetti)

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