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Sedutora, Simone encara tensões entre delírios e delícias que resumem 50 anos de carreira no show ‘Tô voltando’

 “Essa é a Simone!”, gritou da plateia, extasiado, um dos 1.881 espectadores que lotaram o Cine- Theatro Central na noite de ontem, 15 de abril, para assistir à estreia do show comemorativo dos 50 anos de carreira de Simone, Tô voltando.

O comentário entusiástico foi ouvido após a cantora dar voz à música Depois das dez (Tunai e Sérgio Natureza, 1983) com arranjo disco-funk que aludiu às levadas de Lincoln Olivetti (1954 – 2015), mago do tecnopop brasileiro da década de 1980. Depois das dez foi a música escolhida pela gravadora CBS em 1983 para promover o terceiro álbum de Simone na companhia fonográfica, Delírios, delícias.

A música representa uma Simone, não “a” Simone, porque foram muitas as Simones e muitos os caminhos seguidos pela cantora na música desde a edição do primeiro álbum em 1973. Dirigido por Marcus Preto, o show Tô voltando mapeia algumas rotas trilhadas por Simone ao longo desses 50 anos.

Com 23 músicas, já contabilizados os dois sambas-enredos do bis, Por um dia de graça (Luiz Carlos da Vila, 1984) e O amanhã (João Sérgio, União da Ilha do Governador, Carnaval de 1978), o roteiro dá justa ênfase à discografia da artista nos anos 1970 e 1980, décadas áureas na trajetória da cantora do ponto de vista artístico e comercial, respectivamente.

De surpresa, houve somente Sangue e pudins (1976), parceria de Raimundo Fagner com Abel Silva regravada por Simone no álbum Cigarra (1978). Sangue e pudins foi número derramado em cena com arranjo de rock que embutiu a habitual citação de As curvas da estrada de Santos (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1969) e que evidenciou a jovialidade da banda regida pelo diretor musical Pupilo e formada por Chico Lira (teclados), Filipe Coimbra (guitarra e violão), Frederico Heliodoro (baixo), Ronaldo Silva (bateria) e Vanderlei Silva (percussão) – “meu jardim de infância”, como gracejou a cantora em cena.

Aos 73 anos, Simone ainda exerce grande poder de sedução sobre um público que vem envelhecendo com a cantora. Tal fascínio foi determinante para artista manter a atenção da plateia em show cuja estreia nacional resultou extremamente tensa e sofrida para Simone.

Estrondos foram ouvidos no palco logo nos primeiros números. Recorrentes ao longo dos 23 números do show, os problemas técnicos prejudicaram a fluência da apresentação. Por não estar ouvindo a banda, Simone ficou sem chão, interrompeu algumas músicas – como Cigarra (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1978) – e se dirigiu toda hora aos músicos para procurar um norte, além de ter externado as naturais tensões em falas dirigidas aos responsáveis pelo som. “Eu não tô ouvindo. Tá difícil pra mim”, reclamou a cantora em determinado momento.

Para o público, interessado somente em reouvir os sucessos da artista, foi fácil acompanhar o roteiro de Tô voltando. Com exceção de Divina comédia humana (Belchior, 1978), música que a cantora acabou tirando do repertório do álbum Face a face (1977) e até então nunca tinha cantado, tudo já era bem conhecido pelo público fiel da artista. Inclusive a abertura sensual com Tô que tô (Kleiton Ramil e Kledir Ramil, 1982), hit do álbum blockbuster Corpo e alma (1982) que também abriu o show da turnê anterior da cantora, Em boa companhia (2013), estreada há dez anos.

Emoldurada pelo cenário de Zé Carratu, criador de tela que na maior parte do show aludiu à asa de uma cigarra, Simone mostrou que continua cantando muito bem. Até porque teve a inteligência de baixar os tons para não forçar o alcance vocal de tempos idos.

Com arranjos que remetem respeitosamente às gravações originais, criados com fidelidade ao objetivo primordial do show Tô voltando, celebrar em cena os melhores anos de cantora cujo passado é glorioso, músicas como Sangrando (Gonzaguinha, 1980), Começar de novo (Ivan Lins e Vitor Martins, 1979), Alma (Sueli Costa e Abel Silva, 1982) e a sempre comovente Jura secreta (Sueli Costa e Abel Silva, 1977) – esta com o toque doído da guitarra de Filipe Coimbra, destaque da banda – reapareceram com as habituais intenções e inflexões da intérprete, como emblemas da fase mais densa da discografia da artista.

A sensação de déjà vu se diluiu quando começou o bloco com os sucessos de Simone nos anos 1980, década em que a cantora aderiu progressivamente – a partir do ingresso na gravadora CBS em 1981 – a um pop romântico radiofônico que gerou discos idealizados com interferências de produtores musicais e diretores de marketing para manter a artista em alto patamar de vendas. Fórmulas sempre avalizadas pela cantora, a quem cabia a palavra final.

Essa fase gerou hits de grande apelo popular. Quando a cantora voltou ao palco, após cantar Boca em brasa (Juliano Holanda e Zélia Duncan, 2022) em inflamada pisada de baião, e após breve saída para a troca de peça do elegante figurino, o brilho da segunda roupa refletiu a luminosidade que ainda há em canções populares como Você é real (Piska e Fausto Nilo, 1985) e Um desejo só não basta (Francisco Casaverde e Fausto Nilo, 1984). O público cantou tudo.

O fecho desse bloco soou especialmente sedutor com o revival da balada Separação (José Augusto e Paulo Sérgio Valle, 1988), cantada por Simone com trio de guitarristas à frente – amostra de que, quando a cantora arriscou mudar o clima original de um sucesso do passado, o show resultou mais surpreendente.

No todo, Simone encarou as tensões com valentia e foi fiel à própria essência com todos os vícios e virtudes desses 50 anos de carreira.

Para deleite do público, essa Simone tão sedutoramente previsível interagiu com a plateia no bolero Sob medida (Chico Buarque, 1979), se ambientou na estação de Encontros e despedidas (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1981) e reiterou a beleza eterna de Iolanda (Pablo Milanés, 1970, em versão em português de Chico Buarque, 1984) antes de cair nos sambas Ex-amor (Martinho da Vila, 1981), Desesperar jamais (Ivan Lins e Vitor Martins, 1980) e Tô voltando (Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, 1979).

Descontadas as tensões de uma estreia sofrida, Simone voltou à cena com show em que faz bom resumo dos delírios e delícias de 50 anos de carreira. Orquestrada por Augusto Nascimento, novo empresário da cantora, a turnê do show Tô voltando foi feita sob medida para o público da artista, pondo no palco a Simone que o séquito da Cigarra deseja ver e ouvir.

♪ Eis as 23 músicas do roteiro seguido por Simone em 15 de abril de 2023 na estreia nacional da turnê do show Tô voltando no Cine-Theatro Central, em Juiz de Fora (MG):

1. Tô que tô (Kleiton Ramil e Kledir Ramil, 1982)

2. O que será (À flor da terra) (Chico Buarque, 1976)

3. Sangrando (Gonzaguinha, 1980)

4. Começar de novo (Ivan Lins e Vitor Martins, 1979)

5. Cigarra (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1978)

6. Jura secreta (Sueli Costa e Abel Silva, 1977)

7. Divina comédia humana (Belchior, 1978)

8. Sangue e pudins (Raimundo Fagner e Abel Silva, 1976)

9. Sob medida (Chico Buarque, 1979)

10. Alma (Sueli Costa e Abel Silva, 1982)

11. Haja terapia (Juliano Holanda, 2021)

12. Boca em brasa (Juliano Holanda e Zélia Duncan, 2022)

13. Você é real (Piska e Fausto Nilo, 1985)

14. Depois das dez (Tunai e Sérgio Natureza, 1983)

15. Um desejo só não basta (Francisco Casaverde e Fausto Nilo, 1984)

16. Separação (José Augusto e Paulo Sérgio Valle, 1988)

17. Encontros e despedidas (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1981)

18. Iolanda (Pablo Milanés, 1970, em versão em português de Chico Buarque, 1984)

19. Ex-amor (Martinho da Vila, 1981)

20. Desesperar jamais (Ivan Lins e Vitor Martins, 1980)

21. Tô voltando (Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, 1979)

Bis:

22. Por um dia de graça (Luiz Carlos da Vila, 1984)

23. O amanhã (João Sérgio, 1977) – samba-enredo da União da Ilha do Governador no Carnaval de 1978

FONTE : G1 (POR MAURO FERREIRA)

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