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Aquele senhor era o Mengele

Aquele senhor era o Mengele

‘Baviera Tropical’, biografia escrita pela jornalista Betina Anton e publicada pela editora Todavia no ano passado, descreve os 18 anos em que o médico nazista Josef Mengele viveu foragido no Brasil. O livro é tema da crônica do escritor e jornalista Ramon Barbosa Franco. “Entre maio de 1943 a janeiro de 1945 só mudava sua fisionomia impetuosa em Auschwitz quando via gêmeos”, descreve o cronista em ‘Aquele senhor era o Mengele’. O médico viveu foragido em várias cidades paulistas.

por Ramon Barbosa Franco

Raramente eu abandono a leitura de um livro pelo impacto pesado que as palavras, enredadas em tramas e frases, possam causar em mim. Contudo, tive que adotar este afastamento com uma biografia específica, muito bem escrita e bem documentada, por sinal, a do médico e nazista Josef Mengele (1911-1979). Não me refiro ao livro ‘Baviera tropical’ (Todavia, 2023), da jornalista e escritora Betina Anton, premiado como a melhor biografia de 2023 pela Associação Paulista de Críticos de Arte, através do troféu APCA, contudo de outra obra de não ficção que traça com fortes detalhes e descrições precisas exatamente aquilo de horrendo que o ‘Anjo da Morte’ fez em Auschwitz. Durante a II Guerra Mundial, no campo de concentração polonês, Mengele era quem decidia se caminhavam, para a direita ou para esquerda, os judeus recém-chegados, que desembarcavam dos trens de prisioneiros despachados de toda a Europa ocupada por Hitler.

O caminho que Josef indicava significava vida ou morte. Para onde ele indicasse as pessoas ou seriam mortas na câmara de gás ou ficariam vivas, trabalhando como forçados num dos piores lugares do mundo. Sarcasticamente, ele sinalizava se crianças, mães, pais e avós morreriam ou viveriam, e viveriam sabe lá como, passando por todas as atrocidades.

Quando estive no Museu do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém (Israel) – local que abriga a Avenida dos Justos entre as Nações e a memória de todos os que foram violentamente mortos pela insana intolerância nazista – pude ver os sapatos e calçados de muitos desses nossos irmãos judeus que terrivelmente acabaram queimados vivos nos campos de concentração. Algo realmente profundamente triste, marcante e chocante. Não contive, fui às lágrimas por diversas vezes.

A máquina de morte do III Reich teve em Mengele um entusiasta ganancioso, que queria, ao final da guerra, usufruir dos seus feitos. Deixei de ler essa biografia, mas acabei bem envolvido na leitura de ‘Baviera Tropical’, de Betina Anton, principalmente porque a obra retrata os 18 anos em que Mengele passou foragido no Brasil, com medo de ser pego pelo Mossad, o eficiente serviço de inteligência israelense criado pela premiê Golda Meyer para capturar os nazistas foragidos. Muitos estavam na mira dos ‘nazijäger’ – os caçadores de nazistas – entre eles o ‘seu Pedro’, um estrangeiro que desde 1961 havia entrado no Brasil pelo Paraguai, após passar uma longa e boa temporada na Argentina. Por aqui, chegou a morar em Nova Europa, na região de Araraquara, depois na zona rural de Serra Negra, mais tarde passando por Caieiras, Diadema, Embu das Artes e, por fim, na capital São Paulo. “Tante Liselotte, a quem nossos pais nos confiavam todas as manhãs, tinha dado proteção ao criminoso nazista mais procurado do mundo naquele momento: Josef Mengele”, escreve Betina Anton na biografia. Tante era sua professora no jardim da infância, e, inclusive chegou a levar ‘Seu Pedro’ para uma festa junina do colégio, apresentando-o ao diretor da escola como um amigo da família. Dos 34 anos após a II Guerra Mundial em que o ‘Anjo da Morte’ viveu escondido, 18 anos foram no Brasil. Era procurado pelo Tribunal de Frankfurt e o foragido número 1 do Mossad. Entre maio de 1943 a janeiro de 1945 só mudava sua fisionomia impetuosa diante da enorme multidão de prisioneiros que descia em Auschwitz quando via gêmeos, gritando ‘zwilling, zwilling – gêmeos, gêmeos’… E aquilo que ele fazia com essas pobres vítimas, muitas delas crianças pequenas, inclusive, os aberrantes experimentos perversos e as atrocidades de um sadismo à la Herodes, foi exatamente o que me fez abandonar a leitura da biografia documentada, não a de Betina Anton.

A escritora brasileira levou seis anos para redigir a biografia, entrevistou a velha professora da infância, conversou com testemunhas e consultou cartas e, aliás, foram as correspondências que o denunciaram ao Mossad.

‘Seu Pedro’ morreu afogado em Bertioga em 1979, foi enterrado com a identidade falsa de Wolfgang Gerhard, 54 anos (mas tinha 68, de fato). Antes, gostava de ver ‘Escrava Isaura’, uma das maiores telenovelas brasileiras. Tinha preferência por cenas de torturas. Sua verdadeira identidade só foi revelada em 1985, após investigação. “Sem que ninguém desconfiasse da identidade daquele velho nazista, vestido um belo sobretudo de estilo europeu e chapéu de feltro”, escreveu Betina. Aquele homem idoso da capital paulistana, descrito por Betina, era o nazista Josef Mengele, a quem são atribuídas ao menos 400 mil mortes.

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